Bemdito

A guerra faz sentido?

Mais planejada e tecnológica do que nunca, a guerra está longe de ser uma alternativa política obsoleta
POR Simone Mayara

Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia e a guerra, que há anos era anunciada, começou cenas chocantes e análises povoam nossos dias. Como uma fã de internacional, consigo ver a ligação quase direta entre esses acontecimentos de tão longe e o nosso dia a dia. Nesse caso especificamente a conexão foi um tanto mais óbvia: o combustível que já estava nas alturas vai piorar. A possível falta de insumos para fertilizantes na próxima safra – a ministra da agricultura acredita que teremos o suficiente até outubro-  levanta a possibilidade de crise alimentar no Brasil. Nessas horas lembramos que há um enorme ciclo até que os alimentos cheguem ao nosso prato.

Dentro desse interesse pelas relações internacionais está o estudo específico das guerras. Sim, eu estudo Defesa e isso nem de longe significa gostar de guerra ou torcer para que aconteçam. Inclusive, uma parte grande do meus estudos do mestrado foi para demonstrar que o conflito está entre nós desde sempre. Onde há grupos humanos há conflito, afirmação que varia e escala de acordo com o tamanho desse grupo humano e do interesse envolvido. O “estado de natureza” é o momento da história da humanidade antes da sociedade politicamente organizada. Por motivos diferentes, precisamos sair desse estado para a sociedade regida por leis e instituições.

O mito do bom selvagem, alimentado pela teoria de Rousseau, garante que nesse período pré sociedade política vivíamos em paz! Os pequenos contingentes se relacionavam bem e o aumento de contato com outros e de necessidades de troca foram atiçando nossos piores comportamentos. A guerra portanto não estava antes, é filha disso.

Já Hobbes descreve o estado de natureza como um verdadeiro caos, os piores instintos e um mundo no qual o poder da força é o recurso em uso. Criar instituições e leis, organizar todos os grupos para viverem em ordem com apenas um dono do uso da força legítima. Assim, a força fica para a punição , não é mais uma forma legítima de conseguir as coisas…a não ser que você seja o Estado. Dado o título dessa coluna,acho que já deu pra perceber que meus estudos de guerra me fizeram chegar à conclusão de que Hobbes estava certo.

As diferentes ideologias acham diferentes motivações. Para quem vê o livre mercado como solução para os problemas da humanidade, esse também seria o guardião da paz. Inclusive, os críticos do capitalismo colocam no imperialismo e necessidade de expansão de mercado a culpa para os conflitos entre irmãos. Há quem veja na guerra a realização do masculino que domina o mundo, algo que a czarina Catarina e a primeira ministra Golda Meir rebateriam facilmente.

O fato é que os conflitos violentos são retratados já nos desenhos rupestres, nos tempos mais antigos a que temos acesso. Nas mensagens que os antepassados nos deixaram. De lá até os dias de hoje, a guerra virou inclusive objeto de estudo e tática. Um célebre general disse: a guerra é a continuação da política por outros meios. Há claro outro instrumento político relevante nesse caminho: a diplomacia. E sempre que um conflito eclode se perguntam porque ela não foi utilizada ou não teve resultados. Da forma como vejo, ambas, diplomacia e guerra, fazem sentido exatamente por serem o movimento humano organizado para conseguir seus interesses. Em ditaduras, como no caso que estamos assistindo, esses interesses são quase que pessoais. 

Mesmo vendo as imagens terríveis (enquanto escrevo passa a notícia de uma maternidade deliberadamente atingida pela Rússia na Ucrânia) compreendo que a guerra na escala em que acontece hoje marca uma ruptura. Ela foi fermentada por anos e tem sentimentos de revanche e pertencimento envolvidos para muito além da mera motivação econômica. Ela não é irracional, pelo contrário, planejada e utilizando da mais alta tecnologia. É terrível olhar para a guerra e aceitar que é humana e não algo afastado. É terrível aceitar que a guerra, dentro da nossa realidade, faz sentido. 

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.