Bemdito

“Honra” masculina, sofrimento de mulheres

Em pleno século XXI, ainda é preciso que a corte suprema do país defina a legítima defesa da honra como não constitucional
POR Geórgia Oliveira
Foto: Wikipedia Commons / CP

Em pleno século XXI, ainda é preciso que a corte suprema do país defina a legítima defesa da honra como não constitucional. E há resistência

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

De tempos em tempos, alguns conteúdos e programas viralizam e trazem à tona, com timing perfeito, temas que precisam ser rediscutidos. Esse foi o caso do podcast Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo. O podcast revisitou um dos casos de feminicídio mais famosos da história brasileira, que envolveu Ângela Diniz e Doca Street e marcou o imaginário dos assassinatos de mulheres por razões de gênero no Brasil. O feminicídio da socialite pelo seu companheiro em Praia dos Ossos, Cabo Frio, na década de 1970, ganhou as manchetes como “crime passional”, com uma cobertura midiática que se estendeu da fuga de Street até os protestos à pena exígua de 18 meses de prisão, fortemente contestados pelo movimento feminista à época e que levaram a um novo julgamento.

Nos meandros jurídicos, o advogado de defesa Evandro Lins e Silva levantou no tribunal do júri a tese de legítima defesa da honra do acusado. O crime não teria sido cometido friamente, mas por um “moço passional” que, tendo sido rejeitado por Ângela, que desejava o fim do relacionamento, assassinou-a com quatro tiros sem chance de defesa à vítima. As discussões do tribunal do júri tomaram caminhos que passavam muito menos pelas discussões da materialidade evidente do caso e a confissão do acusado, dirigindo-se ao debate sobre a índole da vítima e de sua moral sexual. Como uma mulher conhecida como “pantera de Minas” poderia ser uma vítima indefesa de assassinato? O advogado não poupou esforços para culpabilizar Ângela (a quem chamava de “prostituta da Babilônia”) pelo arroubo emocional de seu cliente, que sempre havia sido um homem de boa índole.

Quando comecei a me debruçar como pesquisadora sobre o fenômeno do feminicídio, há breves quatro anos, via esse episódio (e muitos outros narrados por pesquisadoras que estudavam os crimes passionais, como à época eram chamados) como coisa do passado, matéria da história do direito. Essa parecia uma luta feminista já conquistada, principalmente após a tipificação do feminicídio em 2015, que tornou homicídio qualificado o assassinato de mulheres por serem mulheres. No entanto, não demorou muito para perceber como a nova classificação coexistia frequentemente com a tese da legítima defesa da honra e da alegação de uma passionalidade, uma emoção incontrolável e inevitável que teria levado ao cometimento do crime a partir de provocações da vítima.

Não são poucos os processos de feminicídio que já levaram o judiciário a se manifestar contra a tese de culpabilização da vítima por sua própria morte. A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará precisou, em 2019, afirmar que não existe previsão de “homicídio passional” no direito brasileiro. Mesmo assim, ainda faltava uma decisão superior e final sobre o assunto, que pode ser ratificada nessa semana no julgamento de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, que visa provocar o Supremo Tribunal Federal a decidir se a tese da legítima defesa da honra foi ou não recepcionada pela Constituição de 1988. O ministro Dias Toffoli, relator da ação, proferiu na última semana decisão liminar que demonstra bem qual deve ser a opção da corte nesse caso. Ao classificar a tese discutida como “recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”, o ministro sinaliza que finalmente veremos essa argumentação extirpada do nosso ordenamento jurídico, mesmo que com anos de atraso.

Em que pese todas as especificidades do tribunal do júri, espaço no qual a defesa jurídica técnica convive com argumentos extrajurídicos e morais, não é possível tolerar que 45 anos depois do assassinato de Ângela e 33 anos depois da formação de uma nova ordem constitucional no Brasil, o julgamento de crimes de feminicídio seja um espaço de revitimização e culpabilização de mulheres que já perderam muito, senão a vida, por conta da violência de gênero. Não se trata de uma tentativa de cercear o direito de defesa garantido constitucionalmente a todos os acusados, nem muito menos de um rompante punitivista. Trata-se de mais um passo na longa caminhada de transformação do direito e das instituições jurídicas em algo capaz de colaborar na luta e na garantia de uma vida livre de violência à todas as mulheres.

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.