Bemdito

Que pacto você fez para manter seu casamento?

Mais do que amor, um casamento depende da capacidade de ceder e negociar
POR Paula Brandão

“Nada se parece tanto com o inferno como um casamento feliz!”
Gabriel García Márquez

Sempre estremeço ao observar um casal de longe quando eles não têm consciência de que alguém os olha. O temor se deve à possibilidade de que deixem escapar um olhar suspeito, uma nesga no canto da boca ou uma entonação indevida. Os casais guardam segredos que nos apavorariam ouvi-los! Na intimidade gozam da liberdade para serem honestos e descarregarem suas pequenas maldades e atrevimentos.

Quando escrevo minhas colunas, recebo um retorno ansioso de muitas leitoras, das quais boa parte eu não conheço, de que as faço pensar sobre as valências que as diferenciam dos papeis masculinos em um casamento. Eufóricas, me relatam fatos sinceros dos seus companheiros, e creio mesmo que a franqueza com que narram a mim não manifestam para as próprias amigas. A isso me sinto gratíssima, e costumo passar boa parte do dia seguinte à publicação, refletindo sobre suas demandas, e sobre como posso conversar com outras mulheres acerca disso, sem expô-las, em novas pautas de artigo.

Dia desses eu estava distraída e uma querida colega me chamou. Ela estava muito animada pelo nosso reencontro, o que parte se deve a uma característica dela: simpatia e alegria ao se comunicar. Disse que lia sempre meus artigos e dizia para todo mundo que era minha amiga. Sorri muito com ela. Mas me chamou atenção algo que ela mencionou: que quando as amigas enviavam meu artigo no grupo, ela pensava, ‘ai, meus deus, estava tão bem com meu marido, agora vou ler a coluna da Paula e vou ficar com ódio dele.’

Brincadeiras à parte, fiquei a pensar que tenho sido muito má com os homens mesmo. Acabo os nivelando àqueles que têm nos torturado nas notícias de jornais, pelos atos machistas dignos de incredulidade. Algumas vezes só acredito porque hoje tudo é filmado! Mas eu sei bem que a arquitetura de um casamento é perversa, e que ambos têm parte da culpa quando tudo começa a desmoronar. Creio que essas edificações estão vindo abaixo, devido a nossa coragem, como mulheres, de dizer o que gostaríamos de ter e não temos!

Alguns dos segredos de um casal só são descobertos quando se separam, e outros, mais sórdidos, não se revelam nunca, porque não é possível pôr palavras numa frase capaz de descrevê-los! Sei que as pessoas se assustam quando o sepulcro começa a ser aberto, pois, até a semana anterior, a fulana postava fotos nas mídias da sua família feliz digna da propaganda margarina, e relatos de um pai e marido maravilhoso. Há horas em que penso que a pessoa faz isso, para ver se o cara se toca! Mas, amiga, ele não se manca e ainda fica difícil das suas companheiras te socorrerem porque acreditaram também na sua fábula!

Curiosa por esse tema, conheci a Graciela, uma mulher ficcional que, dias antes da sua festa de 25 anos de casada, resolveu dizer ao marido tudo o que não podia mais ser guardado. A festa toda pronta, convidados por chegar, banquete e empregados a postos, ela revela a trajetória de um relacionamento que nasceu auspicioso, com sonhos a serem realizados, e que foi fracassando dia após dia. O marido sentado, lendo jornal, não fala nada. E nem escuta.

Diatribe de amor contra um homem sentado, de Gabriel García Márquez, é o cenário perfeito para a vistoria desse casamento. A cena é a seguinte: uma mulher (a atriz) resolve passar a limpo o relacionamento, falando alto todas as mazelas, enquanto o marido (um boneco) segura o jornal diante dos desabafos da esposa. Em um relato franco, Graciela narra as faltas de um casamento no qual “não se fala em problemas da cintura para baixo.”

Diante de uma cena constrangedora, ela grita para quem não a escuta! As palavras doem porque saem rasgando o seu estômago, desfazendo promessas nunca cumpridas e mesmo traições que foram vistas de entreolho, sem ameaçar indagar. Diante de um marido ausente, ela diz: “Há um momento da vida em que uma mulher casada pode ir para a cama com outro sem ser infiel.”

Não suportando mais os “minúsculos desgostos da felicidade cotidiana”, ela confessa: “Não aguento mais o inventário matutino das tuas desgraças por não encontrar a camisa que quer, quando há duzentas iguais no armário.” Assim, promete ir embora por ela mesma, insubordinada contra a vida! Diria que Gabriel García Márquez me deu a chance que eu tanto queria de observar a ruína de um casamento pelo buraco da fechadura.

E estremecer, a cada página, por um enlace que celebrava bodas de prata, cujos mil convidados não teriam a menor desconfiança que estavam indo para o velório deste. De perto nem um casal é normal, eu diria! Não acreditem em tudo que veem ou escutam! A nós não é dada a oportunidade de virar um mosquitinho e saber o que se passa entre quatro paredes.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).