Bemdito

E você, sabe quem é a outra do seu marido?

Sexualidade no casamento: liberté, individualité, 'puritané' ou 'putarié'?
POR Paula Brandão
The Lover’s Advance (Edwin Howland Blashfield)

Isso é uma pergunta ou uma provocação? Foi uma indagação suscitada, no diálogo de duas mulheres, no filme Shirley, 2020, no qual a ingênua Rose, revela a amiga que o marido dela, a traía. Shirley, vivida por ninguém menos que Elisabeth Moss, olhou para ela e respondeu: “Eu sei com quem meu marido me trai, e você, sabe?” Após essa revelação, Rose e seu marido, que formavam um jovem casal harmonioso, cheio de amor nas cenas anteriores, têm um desfecho de brigas, rupturas e agressões.

Isso me levou à seguinte reflexão: há traição quando existe pacto entre um casal de revelar a verdade sobre outros relacionamentos extraconjugais ou, tal qual o casamento de Rose, só é traição quando uma das partes é a última a saber? E se fosse o seu caso, preferia tomar ciência ou continuar a sua vidinha feliz como se fosse a única?

Alguns casais que têm relacionamentos abertos estão bem aí, debaixo dos seus olhos! Um dia desses, conversei com uma mulher que admitia ter o casamento aberto e dizia que, para o casal, o fundamental é que existisse o compromisso de não mentir: sempre que um ficasse com outra pessoa, eles deveriam revelar. Eu perguntei: “Por quê?” Ela disse que um casamento nesses moldes não é pra cada um sair fazendo o que bem quer. Existem regras!

Bom, penso que isso acaba caindo na esparrela do convencional, que pressupõe a verdade como critério moral. Um dissenso, se você pensar o que a outra parte, o marido ou a esposa, vai fazer com a informação que recebeu. Se há liberdade para vivenciar os seus desejos, não deviam ser obrigados a contar. A obrigação permeia o outro tipo de relação, a fechada. 

A cultura ocidental em que estamos inseridas revela dois papéis a serem seguidos: a mulher casada, mãe, digna; e a outra, a puta. Michel Foucault, em A História da Sexualidade I, diz que os séculos XVIII e XIX trouxeram, com as noites burguesas vitorianas, um manto sobre as práticas obscenas. A sexualidade passa a ser cuidadosamente encerrada, no seio da família conjugal. A lei do sexo é ditada pelo casal legítimo, heterossexual e, quando se fala desse tema, é baixo, escondido, com certa cerimônia. O quarto dos pais passa a ser o lugar legítimo do sexo. 

Entre o puteiro e o puritanismo

Mas o que fazer com as sexualidades ilegítimas? O autor fala que elas passam a ser reinscritas nas franjas da sociedade, às margens: nos espaços de rendez-vous, nas casas de prostituição, entre outros. Criam-se lugares onde esse discurso pode ser proferido, as pessoas podem se tocar e manter seus desejos saciados na surdina. Esses discursos são circunscritos a um determinado lugar da sociedade. Fora de lá, imperava o puritanismo.

O puritano, penso, não necessariamente é um cínico. Muitas vezes, é uma criatura que foi adestrada, culturalmente, a pensar os desejos sobre determinadas formas e conjecturar pouca coisa além de um sexo a dois ad infinitum. Essa pessoa se surpreende quando escuta que existem outras formas de viver a vida a dois e comenta muito!

Pobres das vítimas do falatório, quando vêm a público supostas experiências extraconjugais, swing (nem sei se ainda existe em tempos pandêmicos), ménage e toda sorte de aventura. Por outro lado, acho que tem um papel pedagógico: o palavrório pode conduzir a descingir alguns formatos de mente. No mais, a hipocrisia é achar que vivemos numa sociedade civilizada e que ninguém vai falar. Fala-se – e muito ! -, até que peguem o próximo bode expiatório. 

No livro A outra, Mirian Goldenberg revela que a mulher que protagoniza esse papel é representada como a vilã, mulher fatal e perigosa, que ameaça os “lares felizes” e a família. Considerada um ser misterioso, é vista como uma pecadora que macula as esposas fiéis, mães e detentoras do amor eterno do marido.

Mas, e quem é a outra? A autora entrevistou mulheres que foram ou são amantes de homens casados, e o perfil delas era o seguinte: universitárias, de classe média, com pensamento crítico elaborado sobre o casamento, de família católica, e pertencentes a diferentes gerações.

Isso me fez lembrar dona Conceição, 65 anos, advogada, que entrevistei para a minha pesquisa de doutorado, há mais de seis anos. Voltei para o meu arquivo pessoal, pois lembrei que ela tinha falado de um caso que havia acabado, recentemente, com um homem casado.

Ela disse: “Me relacionei com um rapaz bem mais jovem que eu, com idade pra ser meu filho, mas de uma cabeça extraordinária, a mil, que falava de tudo: NASA, religião, esporte, de tudo. Num relacionamento de um rapaz com uma mulher com a vida resolvida, que não vai ficar cobrando dele – “ah, pague essa conta, resolva isso!” –, eles (o casal) vão viver apenas momentos de prazer. Quando a gente se encontrava, era pra dançar, beber, jantar, diferentemente da mulher que ficou em casa e que, quando ele chegar, vai só cobrar dele. Quando a gente tá casada, é isso que acontece!” 

Essa mulher dizia que o que tinha de mais valoroso era a liberdade. Retornando à pesquisa de Goldenberg, ela afirma que as suas interlocutoras não queriam que os casos se separassem das esposas, pois queriam preservar a sua liberdade e individualidade. Sendo a outra, podiam ser elas mesmas, falando de seus desejos e construindo as próprias vidas. 

Mas tem uma pista, dada por uma delas, que arrisco um palpite. Aurora diz que a outra é a “verdadeira namorada”. Aí revela a necessidade de ser única, ainda que seja num relacionamento desviante. Arrisco que tudo começa a degringolar quando a necessidade de exclusividade suplanta a de liberdade.

Em se tratando de seres humanos demandantes de amor, qualquer risco é muito alto e, ao se sentirem ameaçadas, as pessoas fazem coisas inacreditáveis. Procure investir no que te rouba o ar, mas use suas pernas como bússolas de onde pisa. Não dê um passo maior do que elas possam suportar! Em se tratando de casais, acredito que “são feitos os pactos mais lúgubres entre quatro paredes!”

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).