Bemdito

Por que escrevo esta coluna para vocês?

Ser feminista não é sobre as minhas feridas, mas sobre as nossas: das brasileiras às afegãs
POR Paula Brandão
Foto: Reprodução

Há seis meses, mais precisamente 27 artigos, escrevo crônicas semanais para vocês. Fui juntando sentimentos, memórias empoeiradas, intuições e observações. Tempos caóticos e desesperadores: para quem gosta de escrever, é matéria que jorra diariamente.

Escrever crônicas é ter essa fartura empilhada ao lado do computador, e o esforço é selecionar, nessa miríade caótica, um tema apenas. As fontes são inesgotáveis e variam desde as mensagens de pessoas que fui conhecendo pelas redes sociais, os cafés com as amigas, os retornos de desconhecidos e os sentimentos que surgem nos leitores. 

Recebo muitos elogios e podia partir deles, num regozijo que faz bem à alma. Mas recorro a uma amiga, que leu meu artigo Ela não ficou no caritó e disse que adorava os meus textos, mas que eu referia aos casamentos de um jeito um pouco negativo, e não eram necessariamente daquele jeito. Ela queria dizer que nem sempre o marido é um embuste, e que o casamento é o momento derradeiro após uma vida feliz. Concordo inteiramente com esse argumento, e fiquei a pensar para quem e por que escrevo.

Eu escrevo nesse tom, uma misturinha boa de ironia, humor e fortes argumentos, porque é preciso. Eu descrevo o meu tempo, e as condições em que vivemos não são nada boas. Preciso cutucar os lugares comuns, pois sei que muitas mulheres estão desconfortáveis neles e precisam de alguém que diga: siga em frente! Você pode mudar as coisas!

Eu escrevo não é porque os casamentos dão certo, é porque, para muitas pessoas, não deu. É para que saibam que não foi feito para vigorar, e que elas podem se divorciar, casar de novo, ou inclusive nunca mais casar. Para dizer àquela moça, que sempre se dedicou ao marido e aos filhos, e que o primeiro nunca a deixou trabalhar, que ela pode recomeçar. Que eu entendo a sua dor e medo, mas ela não é a primeira. O divórcio foi uma conquista das mulheres brasileiras apenas na década de 1970, e muitas não encontram apoio em suas famílias, que insistem em não aceitar separações na sua configuração.

Eu escrevo para que as mulheres, na correria do seu dia a dia, não considerem normal nunca ter sentado com sua filha adolescente para explicar que ela vai ficar menstruada, que ela precisa conhecer sua sexualidade de modo pleno, e que, se não puder ajudá-la sozinha, conduza aos profissionais que possam deixá-la tranquila nesse período da sua vida.

Eu escrevo porque um amigo pediu que eu não deixasse passar a situação das meninas do handebol norueguês, que foram multadas por não usarem biquínis. E para denunciar que vivemos nos anos 2021, e até este mês, do outro lado do mundo, mulheres precisavam ter os dois dedos de homens introduzidos em suas vaginas, para comprovar a virgindade, se quisessem ingressar para as Forças Armadas da Indonésia – o exame se estende até às noivas de policiais militares, antes do casamento.

Eu escrevo porque as minhas alunas se emocionaram quando leram a obra Fome, de Roxane Gay, que revelou só agora, depois de ser uma grande professora e feminista americana renomada, que aos 12 silenciou aos pais, pessoas de sua mais inteira confiança, que havia sofrido um estupro coletivo de 5 meninos brancos, conduzidos pelo garoto que ela acreditava ser seu namorado. Quantas alunas disseram que passaram pelo mesmo, e tivemos que parar a aula, acolhê-las, mesmo mediadas pelas câmeras, e abraçá-las virtualmente.

Eu escrevo porque me aflijo quando navego, desinteressadamente, nas páginas do Instagram, e vejo homens rompendo relacionamentos do modo mais vil com as suas companheiras, expondo-as, querendo sair como quem nunca esteve.

Eu escrevo para dizer para esses “cabras” que eles não estão com essa bola toda! Meu marido passou, dia desses, uma coluna minha no seu grupo de médicos, e um deles ficou revoltado dizendo que do jeito que eu falava parecia que homem não valia nada.

De imediato, recebo uma mensagem de uma colega dele, dizendo que eu descrevi o Estar Médico daquele dia! É por isso que escrevo. Para mostrar que também existem homens que estão conosco, que admiram suas esposas por pautar o que eles dizem, mas não têm o mesmo poder.

Eu escrevo para que as mulheres entendam que os seus corpos só a elas pertencem. Para refletirem que não é normal milhares delas morrendo anualmente, porque fazem abortos clandestinos, enquanto o nosso vizinho, a Argentina, não só garantiu o direito à interrupção da gravidez no sistema de saúde público, como instituiu que cuidar de filho é trabalho e vai pesar na garantia da aposentadoria das mulheres.

Enquanto ainda existirem maridos sendo consultados se as esposas devem ou não colocar um DIU; ou a Britney Spears virar notícia por ter um DIU colocado no seu útero a mando do pai e tutor, para evitar que ela engravidasse; eu escreverei. E do jeito que incomoda aos homens.

Eu escrevo porque não basta querer defender os direitos das mulheres apenas quando o Talibã invade o Afeganistão e mostra a violência nua e crua sobre elas – embora já seja o começo de uma reflexão.

Eu tenho conversado com vocês, ao longo desses meses, sempre sobre essas condições, pois ser feminista não é sobre as minhas feridas, mas sobre as nossas: da brasileira que é assassinada por tentar sair de um relacionamento abusivo à afegã que é retirada violentamente de seus estudos e tolhida em sua liberdade.

Balizo o peso da minha caligrafia pela autora de Teoria King Kong, que assim começa seu livro: “Escrevo para todas as excluídas do mercado da boa moça. (…) Não me desculpo por nada, não vim aqui pra reclamar. Não trocaria de lugar com ninguém, porque ser Virgine Despentes me parece um assunto muito mais interessante do que qualquer outro. Me parece formidável que também existam mulheres que gostem de seduzir, que saibam seduzir, e outras que saibam se casar; que existam mulheres que cheirem a sexo e outras à merenda dos filhos que saem do colégio. Fico muito feliz por aquelas que convêm as coisas como estão. E digo sem a menor ironia. Com certeza eu não sou uma delas.” 

Vida longa ao Bemdito! Parabéns, editores e colunistas, por esses seis meses de resistências! Obrigada a todas(os) que gostam de começar as segundas, tomando o cafezinho comigo e trocando impressões e afetos, desse devir mulher.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).