Bemdito

Ela não ficou no caritó: o que as mulheres solteiras procuram?

A vida das mulheres que continuam querendo amar, ser amadas e fazer sexo, mas longe da ideia de casamento, tido como um antigo condicionamento
POR Paula Brandão
Reprodução do filme A casa dos espíritos

A vida das mulheres que continuam querendo amar, ser amadas e fazer sexo, mas longe da ideia de casamento, tido como um antigo condicionamento

Paula Brandão
paulafbam@gmail.com

A vida dela sempre foi à sombra da família. Resignada, Férula Trueba abriu mão de dois noivados para se sacrificar aos cuidados da mãe doente. Regozijava-se na humilhação das pequenas atividades abjetas, acreditando que a sua recompensa viria do céu. Sua sombra fatídica aparece na narrativa como um vulto, um mau presságio, acompanhada de observações mordazes do constrangido irmão. Com o falecimento da mãe, Esteban, recém-casado, acolheu a irmã na sua casa, e ela passou a dedicar a vida a cuidar da família dele.

O livro A casa dos Espíritos, de Isabel Allende, é menos assustador, esteticamente, que a película, ao revelar a luminosidade de Clara, interpretada por Meryl Streep – jovem mulher casada -, e o azedume de Férula, com traje preto, eternamente enlutada, vivida por Glenn Close. Férula foi expulsa de casa pelo irmão ciumento, que não tolerava a cumplicidade entre as duas mulheres. Jamais esquecerei a cena de quando ela reaparece: morta há dois dias, sozinha, num quarto abandonado. Essa narrativa é do início do século XX e ninguém quer ter esse fim!

Essa representação ficou no passado, claro. As mulheres solteiras de hoje querem ser recompensadas em vida. Não acreditam que um anel no dedo lhes assegurará felicidade. Em uma enquete feita na França sobre qual seria a maior descoberta do século XX, Françoise Héritier revela que os homens afirmaram ser a ida à lua, a conquista do espaço; enquanto que 90% das mulheres disseram ter sido a descoberta da pílula anticoncepcional. Sim, essa tecnologia associada ao divórcio, o trabalho fora de casa e a entrada nas universidades figuraram entre as conquistas mais importantes de emancipação feminina.

Quando só os homens circulavam nas universidades, eram os próprios que detinham o conhecimento e o poder-saber. Eram eles que escreviam a maioria dos livros das estantes das bibliotecas e, em suas letras, retratavam e definiam as mulheres, sempre com letras e definições menores que eles, inferiores. Até que uma foi lá e disse que o “cérebro não tinha sexo”, ou seja, que havia uma divisão entre os que eram estimulados, culturalmente, a pensar – e eram encaminhados aos ginásios – e aquelas que eram ensinadas a obedecer, ficando em casa. 

Foram robustas as rupturas a partir de então. As mulheres solteiras de classe média, que habitam os grandes centros urbanos hoje, são independentes financeiramente, têm maior escolaridade que os homens, moram sozinhas e regem suas vidas pelos próprios desejos. É aquela moça alvissareira que a gente encontra por aí, cheia de novidades, com certo brilho no olhar e o rosto descansado. Essa mulher não se assemelha em nada àquela de outrora, caída na desgraça, solteirona, que morria de medo do caritó: romperam esse estigma e são mais bem resolvidas.

Para ouvidos atentos, elas dirão que não existem homens (ou mulheres, de acordo com a preferência) em Fortaleza. Desconfie! Essas mulheres já passaram por vários relacionamentos e provavelmente ficaram mais seletivas. E esse é um caminho sem volta! Não esconda seu marido delas, provavelmente nem entendem por que você está casada há tanto tempo com esse homem. Pare de colocar nas redes sociais aquelas indiretas da sua vida maravilhosa e cheia de filhos, pois talvez essa seja uma ficção que você gostaria de acreditar. Quando fala de seu companheiro(a) para elas, já entenderam que o homem que você descreve só existirá três encarnações à frente! 

Em Solidão-solitude, Luci Mansur percebe as mulheres solteiras num entre-lugares que redefine e inova suas identidades sociais. E diz que o significativo aumento de mulheres alheias ao casamento e à maternidade pode ser interpretado como um sofisticado traçado de transformações políticas que revelam uma maior busca por igualdade entre os gêneros. As mulheres continuam querendo amar, ser amadas, fazer sexo, mas dissociadas da ideia de casamento, e numa busca por romper com antigos condicionamentos. Elas estão em maior número nas capitais, e suas falas são, muitas vezes, abafadas ou diminuídas. Fugiram do modelo óbvio do casamento, vivem a sós. A autora diz ser possível transitar da solidão para a solitude, em suas complexas injunções psicológicas e sociais, desde que exista sustentação emocional e ainda oportunidades culturais oferecidas a elas, no continuum articulado pelo meio familiar e pela sociedade em que vivemos.

Mas numa sociedade tradicionalista como a nossa, há também grandes recuos. Mirian Goldemberg, em Coroas, avalia que, mais do que um belo corpo, as mulheres solteiras invejam as casadas pela estabilidade conjugal. No Brasil, há o capital marital, que é a valorização das mulheres por serem casadas, ou seja, um discurso construído, tendo o homem como referência, para dar poder às mulheres, que se sentem mais interessantes e felizes. Essa ideia de que, para as mulheres independentes, há uma “falta” determinante é interessante, pois requer pensar que a emancipação precisa ser financeira, cultural e emocional. 

Desde que as mulheres ousaram deixar as máquinas de costura para pilotar as máquinas tecnológicas que gestam o grande capital, elas conseguiram atingir patamares nunca antes vistos. Ainda assim, a mulher que ousa viver só é vista com suspeição pelas demais.

Em uma conversa, dia desses, eu argumentava que uma das coisas que mais me compraziam era sair e almoçar sozinha, tomar uma boa taça de vinho, enquanto lia um livro. Ao que obtive como resposta de uma amiga: “ah, sim, quero ver você se sentir tão bem se fosse um jantar. Diz isso por ter companhia à noite.” Sim, as noites, certamente, são mais solitárias. Contudo, não é possível que ainda tenhamos nossos caminhos guiados pelo malfadado patriarcado e pela sobreposição dos valores familiares que oprimem as mulheres livres e autônomas, condenando-as às fogueiras, a uma viuvez perpétua ou à solidão a dois. 

Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).