Bemdito

A febre dos clubes de leituras para mulheres

A experiência de ler e interpretar de forma compartilhada é um poderoso caminho para a solidariedade entre mulheres
POR Paula Brandão

Quando levanto memória sobre o primeiro ano pandêmico, me pergunto como pude resistir. E respondendo a essas pesquisas do google forms consultando esse nosso passado recente, percebi que me salvei pela literatura. Não uma leitura qualquer, mas aquela que me movia na imobilidade, que me levava a habitar noutros mundos e respirar o ar puro da sobrevivência.

Os livros representaram rotas de fuga, possibilidades de manter a minha sanidade mental acompanhada pela escrita de tantas escritoras que imprimiram fortes tintas para revelar possibilidades de sair de desafios humanos e sossegar nossos peitos cansados de procurar respostas. E, nesses dois anos, muitas mulheres compartilharam essa mesma intuição e se juntaram em grupos de leituras feministas com outras que nem conheciam.

Sob pena de se aventurar a pensar sobre suas próprias questões, encontraram companhia aconchegante no ombro de uma estranha do grupo, ainda que mediado pelas telas. Podia não ter dado certo, mas o que deu substância as nossas vivências foi exatamente esse elemento que nos unia como mulheres, que rapidamente desfez qualquer estranhamento e ou distância.

Nunca houve uma proliferação de tantos títulos de autoras geniais como agora. Em qualquer livraria on line ou física, encontramos sessões para sermos iniciadas por nossas ancestrais na profundidade das nossas histórias. Não é preciso estar numa faculdade específica para saber quem é Djamila Ribeiro, Virginia Woolf ou Grada Kilomba. Elas estão aí para serem frequentadas, esmiuçadas e trazer instrumentos para nossa vivência cotidiana.

Na reunião de elos femininos, para debater os interesses despertados pela leitura, rapidamente as mulheres entenderam, pela própria experiência, o lema da segunda onda feminista de que o “pessoal é político”. É assim que descobriram que o que atinge a Maria atinge a todas as outras, por não se tratar de uma questão subjetiva, mas por perpassar meandros de uma estrutura vivenciada coletivamente.

Embora socializadas das mais diversas maneiras, elas usaram a ferramenta literária para desabafar sobre seus lamentos em companhia de outras mulheres. O desabafo é um ato de expurgar aquilo que não é possível mais ficar guardado, mas o que era escondido às vezes, da melhor amiga, vinha à tona nesses momentos juntas. É nesse sentido que Patricia Hill Collins fala dos espaços seguros para que as mulheres possam falar e serem ouvidas. E diz que só uma mulher negra, é capaz dessa escuta. Eu digo: só uma mulher pode verdadeiramente dar ouvidos a outra.

Nas nossas vivências femininas, costumamos intuir em que lugares encontramos atenção. Por isso esses grupos viraram a tábua de salvação de muitas, e consigo imaginar cada uma, pegando seu livro, sentando uma horinha do seu dia cheio, e conectando-se com as demais. O dia do encontro era esperado, desejado, como uma festa! Vestiram uma boa roupa, passaram um batonzinho, colocaram flores na mesa e abriram suas telas para se verem. Cada uma com um livro de edição diferente, manuseado de formas diversas, com linhas tingidas de vermelho, ou de lápis. Edições mais antigas revezavam com novas brochuras, e versões digitais no kindle.

Daqui a um tempo, quando elas voltarem aos seus livros e às marcas ali deixadas, sentirão um aperto de leve em seus corações, lembrando exatamente o que a colega do grupo revelou naquela ocasião e ela mesma. Cada livro é corpo, e quem me ensinou isso foi um sociólogo português, José Machado Pais, quando levei meu livro velhinho para que autografasse. Ao ver as pintinhas marrons, dando um feitio de passagem do tempo, ele tocou o livro e disse alegremente que as manchinhas revelavam o quanto aquele livro tinha estado comigo.

Não conheço grupo de leituras masculinos, embora um ou outro homem tenha participado dos femininos. Talvez o fato deles terem escrito tantos livros até pouco tempo, e contado uma história única, enquanto muitas mulheres escreviam escondidas ou com pseudônimos, os tenham deixado exaustos! Mas o fato é que as autoras foram à forra e aproveitaram o despontar de uma nova era em que as obras de mulheres jorram infinitamente, e a escrita é feita em primeira pessoa, como deve ser. Viva a nossa intuição e facilidade de sobreviver coletivamente, lendo e recriando as nossas dores, desejos e delírios ficcionais (ou não).

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).