Bemdito

Trabalho, saúde mental e pandemia: o eros supliciado

O erotismo como antídoto para a doença e a morte
POR Camille C. Branco
Edward Hopper

“Se eu não puder dançar, não é minha revolução.”

(Emma Goldman)

 Na sessão de análise desta semana, que segue ocorrendo por telefone, minha psicanalista revela algo significativo: “Camille, pessoas que não tiveram comprometimentos de desempenho laboral severos durante esse um ano e meio de pandemia só podem estar em um lugar de absoluto privilégio em se tratando de condições de saúde mental e trabalho”. Ela acrescenta que prazos estourados, faltas, adoecimentos, na experiência de condução clínica que vivenciou, foram a regra, não a exceção durante a pandemia. É evidente que eu senti isso acontecer na prática. De forma geral sou hiperfocada e muito diligente com minhas obrigações profissionais e, ainda assim, senti tudo ficar mais lento e minha capacidade de trabalho reduzir muito. Mas é diferente ouvir de uma profissional em saúde mental que esta sensação angustiante de exaustão, culpa pela exaustão, cobrança por produtividade são um fenômeno amplamente observável. 

 Porém, basta um olhar mais atento e conjuntural para constatar este fato. A internet tornou-se o mecanismo mais compulsivo de comunicação em tempos pandêmicos, porque, para quem teve a possibilidade de seguir o isolamento social segundo as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, ela parecia o sinal restante de que havia pessoas no mundo que ainda estavam pensando, escrevendo e falando. E, nas redes, tudo o que vislumbrei no último ano foram relatos de extremo cansaço, culpa pela procrastinação, sensação de aflição por não conseguir dar conta das atividades, medo de as contas do mês não fecharem em função do aumento significativo dos preços de produtos básicos de alimentação e higiene, além da dificuldade de pagar aluguéis elevados. Trabalhar mal deixa de ser uma opção com os orçamentos tão apertados, mas, ainda assim, a solidão, o luto pelos mortos e o medo do adoecimento dão a tônica de agudos processos de estafa. 

Posso falar em específico sobre minha experiência em se tratando de uma pessoa que cursou metade de um doutorado em tempos de pandemia. Uma amiga também psicanalista a quem prezo muito me conta que considera desumana a experiência de colegas que tinham prazos de defesa e qualificação a cumprir em tempos pandêmicos. Quanto a mim, até agora tenho dificuldades em me adaptar com o formato de ensino remoto e, especialmente nas ocasiões em que sou eu a dar aula, saio muitas vezes das reuniões online sentindo náusea e dor de cabeça após tanto tempo olhando para uma tela e ouvindo as vozes dos alunos pelo fone de ouvido. Meus amigos professores dizem o mesmo: a hora-aula pelo ensino à distância é muito mais cansativa que a presencial. Alguns de meus colegas, ainda, passam pela experiência difícil de terem sido aprovados em processos seletivos e não terem visto seus orientadores presencialmente nenhuma vez.

 Este não é um texto cujo fim é fazer uma lista das dificuldades de trabalho impostas pela pandemia. Meu intuito é propor um exame mais crítico e estrutural sobre (a culpa pela) nossa exaustão e a queda de nossa capacidade de trabalho em tempos de trauma coletivo. Embora eu possua discordâncias de algumas das proposições teóricas de Byung-Chul Han, penso que o autor acerta em cheio quando afirma que a difusão de um discurso de motivação, iniciativa e projeto são muito mais efetivos para a exploração do que o chicote ou as ordens de um patrão. A auto-exploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, diz ele, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. No entanto, o sujeito instado à motivação, empreendedor de si mesmo, não é livre de fato, defende o filósofo. Ele é vítima de uma coerção autogerada, contra a qual a chance de resistência é muito menor. Quem vai nos defender de nós mesmos?

Quem fracassa, acaba sendo culpado por seu fracasso. A impossibilidade de expiação da culpa pelo fracasso, defende Byung-Chul Han, é responsável pela depressão do sujeito do desempenho. Bem como pela chamada síndrome do burnout. É neste ponto que os mecanismos do capitalismo se sofisticam: se a mensagem massivamente propagada é a de que “você pode”, a de que você deve “procurar ser sua melhor versão”, a de que você é “seu único inimigo” em relação ao sucesso profissional, que é tudo uma questão de disciplina, de “trabalhe enquanto eles dormem”, dinamitam-se as possibilidades de revolta e revolução quando esta farsa liberal explode contra seu rosto porque você está exausto de jornadas de trabalho extenuantes e não tem motivação para produzir quando o mundo todo desaba em peste, sofrimento social e desigualdade. 

Com o aumento da cobertura vacinal no país, a tendência é a de que as atividades presenciais retornem cada vez mais, muito provavelmente sem políticas públicas para que esta transição, após um longo período de dor, seja feita de modo responsável. Este texto é um convite, em primeiro lugar, de compaixão para conosco, com nosso cansaço e sofrimento, que possuem raízes sociais. Em segundo, um convite que creio necessário de ser repetido, continuamente, à insubmissão.

Byung-Chul Han acredita que um dos caminhos de insubmissão é o do erótico, o da cupidez, pois este, por seu excesso e transgressão, nega a alienação do trabalho e do mero viver, fetichizados pelo escravo moderno. Descentralizador da ênfase liberal no “eu”, o eros, diz o filósofo, faz com que, ao invés de me afirmar enquanto soberano, eu me perca no outro e para o outro, para que ele depois volte a me colocar de pé. O amante, através do outro, reconquista a si mesmo. 

O erotismo, segundo Bataille, com o qual Han corrobora, consiste em dizer sim à vida até a morte. A proposta de Byung-Chul Han é a de que, ao invés de navegar sem rumo, sem descanso e sem paz, como o sujeito esgotado e deprimido de hoje, que precisa explorar eternamente a si mesmo, retiremos o eros do local de agonia em que o colocamos, para que ele nos conduza a testemunhar novamente o belo. O eros é um meio político de uma revolução poética da linguagem e da existência. É uma fonte energética de renovação, que nutre ações políticas. Nos termos de Byung-Chul Han: o eros vence a depressão. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.