Bemdito

Eu não preciso de terapia

Fazer terapia é como viver eternamente tal qual um Sísifo: empurrando uma pedra ladeira acima a cada nova sessão
POR Rhaina Ellery

Eu não preciso de terapia. Por anos, acreditei nisso. 

Para além da arrogância, ignorava o fato de eu não ser senhora em minha própria casa. 

Até que, um dia, o estranho começou a passear nu pelos corredores. Meu inconsciente surgiu como que pintado por Edvard Munch e fui para o divã. 

Na primeira sessão, o analista educadamente avisou que seus horários estavam cheios e quis saber o que tinha me levado até lá. O grito!, poderia ter respondido secamente, mas passei cinquenta minutos falando diante de um homem que eu nunca tinha visto antes. Não lembro de praticamente nada do que aconteceu ali, a não ser por uma frase: minha certidão de óbito está quase pronta, carrego o mesmo nome de uma irmã que morreu, ainda criança, dez meses antes do meu nascimento. 

Na manhã seguinte, a secretária me telefonou querendo saber se eu poderia ir todas as quartas-feiras. Então, quer dizer que sou louca mesmo?, meu preconceito se antecipou em perguntar e pude ouvir o riso abafado da atendente. O que seria só uma sessão, está completando quatro anos de vida. O horário semanal e meu inconsciente apareceram.

Antes de fazer análise, achava que massagens, chope com amigos ou banho de mar calariam minhas angústias e amorteceriam meus desejos. Ficava alguns instantes relaxada, mas o estranho voltava a aparecer. Ele continuava a rondar meus cômodos, sobretudo enquanto eu dormia.

Alguns dizem que é muito bom fazer terapia. Não, se você estiver realmente comprometido, não é muito bom. Muitas vezes, me sinto como Sísifo: empurro minha pesada pedra até o cume da montanha, ela rola ladeira abaixo, observo, retorno para aquela mesma pedra e empurro-a novamente morro acima. Sem parar. 

No espaço analítico, já não importa quem foi meu algoz, o outro fica do lado de fora da sala e preciso dar conta do eu-monstro. Diante do espelho manchado, encaro uma forasteira, vejo o que me tornei na tentativa de sobreviver ao grande absurdo que é a vida e, mesmo incomodada, não quero deixar de olhar. Sou autorresponsável, porém, recuso algumas denúncias. 

Ao longo do meu caminho esburacado, entendo melhor a dinâmica da minha família, desço do pedestal em que eu mesma me coloquei e decido explorar meu parque arqueológico. Então, ressuscito traumas como quem escava fósseis e muitas vezes os atiro no chão. Pego a lupa e me aproximo: estou no miolo, quebrada. Eu nem sabia que tinha tantas lágrimas recalcadas para chorar, mas, sem julgamentos, sigo na investigação de um crime que nunca aconteceu.

Hoje, me pareço mais com um mórmon. Quando vejo, já estou pregando a palavra da minha salvação e sendo missionária da iluminação pós conversão à psicanálise. A diferença é que não bato de porta em porta e percebo quando meu testemunho não é bem-vindo. Respeito resistências. Afinal, nossa natureza sabe quando recorrer à camuflagem e não tenho a pretensão de indicar a saída de emergência a ninguém. Ainda nem sei ao certo onde fica a minha. 

O fato é que tenho aprendido a me ouvir, calar meu narciso e a sentença exclamativa mais repetida pelas pessoas próximas é: como você mudou! Nem sempre o tom é positivo, mas agradeço mesmo assim. Aceito que não atingirei um estado evoluído de humanidade. No final das contas, só a tentativa é possível.

Rhaina Ellery

Advogada pública, especialista em escrita e criação e mãe de duas meninas.