Talvez, Dostoiévski
Não sei uma palavra de ucraniano, mas entendi quando o casal disse ao recepcionista do hotel seu país de origem. Em inglês, explicaram que estavam viajando pelo Brasil há dois meses. Chegaram à Amazônia no dia em que a guerra começou, deduzi. Era um casal jovem, ruivo, não mais de trinta anos, e ambos poderiam facilmente ser figurantes de um filme sobre vikings. Logo vikings? Estereótipo é um animal difícil de domar.
Foi inevitável acompanhá-los com curiosidade, a internet do hotel era capenga e tive esperanças de saber notícias de uma parte do mundo por meio de qualquer expressão de espanto ou alívio vindo deles. Eu sabia que os conflitos orientais continuariam esquecidos pelo restante do planeta, mais ainda.
No almoço, pediram ensopado de pirarucu e beberam caipirinha de jambu. Eles tinham dificuldades com nossas vogais, assim como eu tenho com as suas consoantes. Ainda assim, arriscaram tambaqui e tacacá e, a cada nova caipirinha, as gargalhadas e a fluência no português eram mais livres. Zelensky deve ter xingado Pútin, imaginei.
Eles estão muito felizes, né? Que estranho!, cochichou um brasileiro para sua esposa. O êxtase pode conviver com a angústia e não existe ditadura entre sentimentos humanos, ensaiei dizer, mas escolhi a diplomacia silenciosa do olhar fuzilante. Lembrei, então, de um trecho do Caderno, de Nijinsky, bailarino nascido em Kiev e criado em São Petersburgo.
Sou um homem, não um estrangeiro, nem um cosmopolita.
Assim, após uma manhã sem notícias faciais de mísseis russos ou molotovs ucranianos, apenas de turistas sendo homens, parei de seguir o casal, que só voltou a aparecer no meu radar na última noite da nossa estadia.
Fomos conduzidos por um guia local para uma exploração noturna das margens do Rio Negro, eles entraram no barco e se sentaram na minha frente. Éramos sete tripulantes: eu, minhas duas filhas, os ucranianos, o guia e o comandante. Cada um de nós vestiu seu colete salva-vidas camuflado e seguimos. O farol verde da lancha era o nosso condutor, até que olhamos para baixo e vimos o céu refletido no espelho negro do rio. Minha filha advertiu: segura, mamãe, estamos flutuando no espaço sideral!
A cada aproximação da margem, o guia apontava sua lanterna cortante para um bicho. Garça, cobra, aranha, jacaré e, enquanto éramos apunhalados com tanta majestade, os animais seguiam com desdém pela humanidade. Foi uma hora de contemplação e ficamos sem alfabeto diante da beleza absoluta da Amazônia.
Na volta, o comandante desligou o motor do barco e pediu um minuto de silêncio para escutarmos o som da floresta: o eco da selva era a música da natureza em pulsação. E sob a melodia furiosa da escuridão, o casal de ucranianos se entrelaçou num abraço forte, como se seus corpos fossem escorregadios e pudessem escapar pela face sombria do rio. Ali, à deriva, testemunhei o agradecimento desesperado pela vida. A presença esmagadora da finitude entrou no barco e choramos. Todos. Aqueles segundos duraram o tempo da memória. Éramos como pequenos sobreviventes do fim do mundo.
O motor voltou a fazer barulho, era tempo de voltar. E o encantamento de uma frase escrita por Dostoiévski, escritor e, não por acaso, russo, me acompanhou pelo resto do caminho: a beleza salvará o mundo. Talvez.