A melancolia dos dias nublados
Há dias em que é necessário aprender a deixar ir aquilo que caiu na corrente das águas
Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com
Nos últimos dias, tem chovido ininterruptamente em Fortaleza, a terra do Sol. Quando as nuvens se acumulam e criam uma manta cinza a cobrir todo o céu, as cores aqui embaixo desbotam e as cenas surgem meio empalidecidas. Esse período recente, de manhãs molhadas e noites entrecortadas pela voz do trovão, coincidiu com minha tensão pré-menstrual. É impossível não deixar a melancolia avançar sobre os pensamentos confusos, agarrados à saudade, ao remorso e ao desejo. A cidade que se apresenta emoldurada pela janela, sem vestígios do azul rasgado e dos altos contrastes, não parece mais a minha. Quem tem família no sertão sente culpa por não festejar os dias de chuva, mas tenho cá minhas razões.
Por vezes até esqueço a famosa TPM, assunto que imediatamente une mulheres desconhecidas em qualquer parte. A situação se repete: percebo-me sensível demais, agoniada, a ponto de transbordar, sem paciência para resolver o pequeno contratempo da pia entupida ou a tarefa de matemática da filha ou a planta que precisa de mais espaço, e eis que me deparo com uma mancha de sangue na calcinha. Nesse momento, encho o peito de alívio, sabendo que há uma espécie de lente embotando minha relação com o mundo, que a tristeza é passageira, tal qual a agitação da alegria, e os hormônios têm papel importante na configuração do caos sentimental que me ronda.
Por sorte, não costumo sentir cólicas fortes, apenas pontadinhas nas laterais da cabeça e uma dor branda que se concentra na barriga, amolece o corpo inteiro e desce em ondas pelas pernas, tornando-as pesadas. Se chove nos primeiros dias da menstruação, como é o caso de agora, durmo de meias porque sinto frio nos pés. Linhas ressaltam a divisa entre os olhos e as bochechas. Estou cansada. Entender que o humor, a libido e a disposição física e mental são profundamente alteradas ao longo do ciclo menstrual, a nível neuropsíquico, me ajuda a aceitar e a lidar com os diferentes graus de ânimo. Lá fora a chuva persiste, como quem acena com certa ironia. Se não me banho nela, ao menos posso escutá-la, mas não decifro seus sussurros.
Uma vez perguntei a um grupo de estudantes sobre as lembranças mais vívidas que tinham da chuva e muitos relataram a sensação das meias encharcadas, cheirando azedas dentro do tênis ao longo dos trajetos de ônibus e das aulas intermináveis no ensino médio. Mas lembro-me também de uma sensação maravilhosa: a de boiar no mar, aparando com a fronte, a barriga e as coxas, os pingos que despencam das nuvens. No interior, é comum ouvir dos mais velhos que se deve evitar tomar banho nas primeiras chuvas. Não entendia o porquê, mas costumava obedecer e ficava dentro de casa, entediada, cheirando por detrás das venezianas o bafo úmido da terra.
É mesmo diferente a relação com a chuva quando se está na cidade e quando se está no sertão, na serra ou na praia. Do apartamento, sei que por ora a chuva me serve para lavar as cores das telas, deitar na rede, descolar o corpo e lembrar num sobressalto as aventuras de um passado nem tão distante que vez ou outra vem beliscar-me as pernas, a sorrir. Então, a vontade é de me agarrar. A uma teimosia, um livro, uma lembrança ardente, um traço de nanquim vermelho aguado.
Ao mesmo tempo, a chuva de dentro escorre e me deixa quieta de um jeito que estranho e desconheço. Minha menstruação dura sete dias e, entre o terceiro e quinto, jorra um rio que me impede de dormir de lado ou realizar certas posturas. Não consigo me acostumar, mas considero o recado: há dias em que é necessário agir vagarosamente, exigir menos agilidade, pintar sem objetivo, aprender a deixar ir aquilo que caiu na corrente das águas, despedir-se enfim de impulsos que há muito foram embora.
Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.