Bemdito

Desatar Encante: um rezo para salvar os dias

Um convite para escutar o farfalhar das árvores e o canto dos pássaros, que parecem sussurrar ao pé do ouvido: "Você não está só"
POR Ivna Girão

Um convite para escutar o farfalhar das árvores e o canto dos pássaros, que parecem sussurrar ao pé do ouvido: “Você não está só”

Ivna Girão
ivnanilton@gmail.com

O que você escuta quando olha para dentro de si, quando ouve o seu próprio silêncio? O que toca dentro do seu peito é paz ou é medo?

Em tempos de pandemia, a calma do silêncio tem sido uma busca difícil. O ruído da cidade virou o barulho do medo, é a sirene alta da ambulância cortando o ar e lembrando, a cada minuto, o temor da morte. Em casa, em isolamento, as horas pesam e a solidão demora.

E para preencher os vazios, achar prazer em horinhas de descuido, criei um novo hábito: o de escutar podcast. Eles me fazem companhia enquanto lavo a louça ou escrevo, são vozes amigas. E compartilho uma preciosidade sonora que estreou em março, o Desatar Encante – um projeto lindo, feito por indígenas do Ceará, para desacelerar os tempos, ouvir os sons de dentro.

“Desatar Encante é ouvir nosso corpo e espírito, é fortalecer a nossa existência e se manter em resistência. Desatar encante é deixar a terra, a água e o fogo, os ventos falarem com as nossas vozes, é realizar os nossos sonhos através de conexões, histórias e imagens, de vivências. Desatar encante é desacelerar, é respeitar o tempo dos nossos encantados, dos nossos guias, da nossa espiritualidade, é processo de cura, é construção coletiva, é deixar o encante desabrochar”, fala, em voz mansa, Marciane Tapeba, uma das mentoras.

Desate Encante é isso: é coisa que nossos antepassados querem nos falar. E, no podcast, a narração completa a poesia: “A arte liberta. E todo mundo sabe fazer alguma coisa – alguém sabe cantar, sabe dançar e, assim, vai desatando os nós. Mas esse desatar só depende de você. A encantaria é o que você sabe fazer”, diz o podcast.

O Desatar Encante vibrou como uma oração, como um rezo para salvar os dias. É como conversar com as árvores, escutar os passarinhos para encontrar o equilíbrio das matas de dentro e de fora. É perceber que, mesmo em isolamento social, você não está só – o encanto está aí dentro, é companhia no silêncio quando o corpo repousa, quando o tranquilo da noite se aquieta com o barulho da chuva, o sono se embala com o rajar dos trovões, a alma achando conforto no cultivo da terra no quintal, no sabor gostoso da tapioca com café, no alento de deitar no colo de mãe Tupã e amanhecer – e como diz um amigo meu: “Morrer é não ver o dia nascer”.

E sinto que o “não dito” tem mais força do que o proferido. Lembro de um encontro que tive com matas e encantarias. Em uma viagem para Almofala, Terra Indígena Tremembé, fui até o salão de cura de Dona Elita: pedi uma reza, ganhei proteção em silêncio. Na tradição, ela recebeu, em sonho, um recado do encantado – de que a reza tinha que ser feita somente em guardado – a oração era trato nunca pronunciado. Dona Elita só poderia falar os versos no dia da sua partida, uma travessia para o próximo que o seu fazer prosseguiria. E, desde o encontro com Elita, aprendi que a fé no silêncio é mais poderosa, forte.

E para adiar o fim do mundo, um convite: silenciar os ruídos de fora e amplificar as melodias de dentro, abrir espaço para escutar as revoadas no peito, as sabedorias dos encantados, celebrar as passarinhadas do Pajé Barbosa: “A dança dos passarinhos todo mundo vai cantar, a dança dos passarinhos todo mundo vai dançar”.

Ivna Girão é jornalista e Coordenadora de Comunicação da SECULT. Está no Instagram.


Conteúdos produzidos por indígenas nas redes sociais

Desatar Encante
Juventude Indígena Conectada
Benício Pitaguary
Articulação de Jovens Indígenas Tapeba
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará
Antônia Kanindé
Weibe Tapeba

Leitura recomendada

Xamanismo Tremembé, abertura de lugares e formação de pessoas indígenas (Ronaldo de Queiroz Lima)

Ivna Girão

Jornalista, historiadora e escritora, é coordenadora de comunicação da Secretaria de Cultura do Ceará.