Bemdito

Como você está trabalhando neste estado de luto?

Empresas são feitas de pessoas, pessoas são feitas de emoções e as emoções não andam nada bem
POR Paulo Carvalho
O Grito (Edvard Munch)

Empresas são feitas de pessoas, pessoas são feitas de emoções e as emoções não andam nada bem

Paulo Carvalho
paulomarquesdecarvalho@gmail.com

Estamos todos doentes no Brasil. Se não de Covid, de angústia, de ansiedade, de tristeza ou de indignação. O espetáculo da morte virou corriqueiro. Se ela não adentrou a rotina da sua família, agradeça. Mas não esqueça que ela cravou um buraco bem no meio do peito de algum colega de trabalho.

A pandemia não significou baixar a guarda de quem trabalha, longe disso. A maioria dos trabalhadores seguiu trabalhando de forma presencial, expostos em transportes públicos lotados, vestindo equipamentos necessários e desconfortáveis para minimizar o risco da doença. Quem ficou no home office descobriu que não tem mais hora para apagar as luzes. O meio ambiente de trabalho continua exigindo produtividade enquanto as pessoas agonizam suas perdas. Empresas são feitas de pessoas, pessoas são feitas de emoções e as emoções não andam nada bem. Vivemos um luto coletivo. E precisamos saber como as instituições e empresas estão integrando em sua gestão uma política concreta que dialogue e reconheça as particularidades desse luto.

O sociólogo e psicólogo alemão Nobert Elias, em A solidão dos moribundos, já enfatizava que a morte é um problema dos vivos. Cada pessoa tem sua maneira de lidar com a certeza de que toda vida tem um fim. As perdas têm aspectos singulares porque cada um vivencia à sua maneira um processo emocional único e intransferível.

Há fases clássicas do luto reconhecidas pela tanatologia, como negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. O modo como a empresa dialoga com os estados de luto dos seus funcionários diz muito sobre ela. Se as pessoas têm tempos próprios de lidar com essas fases, a política da empresa deve levar em conta as individualidades de cada processo.

Se o luto no ambiente organizacional era pouco discutido antes da pandemia, tornou-se uma pauta obrigatória para quem lida com gestão de pessoas nesse momento. A máxima motivacional das redes sociais é “seja gentil com as pessoas, quase ninguém está bem”. Esse chamado ético à empatia, embora valioso, não é suficiente para as demandas concretas do trauma social de perda de expectativas que estamos vivendo.

A legislação incorporou um tempo frenético de lidar com a perda dos nossos. Como regra geral, o tempo de luto é de dois dias consecutivos de ausência legal em caso de falecimento de cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa declarada como dependente econômico na Previdência Social. Se perder qualquer desses entes em uma sexta-feira, o trabalhador já deve bater o ponto na segunda. As empresas também contavam com uma rede de apoio dos colegas de trabalho para lidar com as perdas nas esferas pessoais, mas na pandemia a situação é especial, já que a sensação de desamparo é coletiva.

Um estudo recente realizado com pesquisadores canadenses e americanos, através de uma conjugação entre mortalidade e graus de parentesco, concluiu que cada morte por Covid-19 afeta diretamente uma média de nove membros de uma família. Não é difícil perceber o número de trabalhadores em um processo direto de luto no mundo. Os demais acabam tomados por essa nuvem de aflição, seja pela proximidade dos mortos e enlutados, seja pela fragilidade e vulnerabilidade que a situação escancara. O nosso luto é também pelas perdas de expectativas no mundo.

Não temos espaço de evasão para esse luto em um país com pouca vacina e com um vírus brincando de roleta russa no elevador, no supermercado, no almoço de domingo com a família. Sair de casa é presenciar também o desemprego e a miséria nos encarando cada vez que o semáforo fica vermelho e lemos os cartazes levantados por velhos, jovens e crianças pedindo qualquer ajuda. “Vai dar certo”, diz a hashtag espalhada por todo canto da cidade, mas enquanto não dá certo, ou seja, agora, o que podemos fazer?

Na crise do luto, faz parte repensar a vida. Uma reavaliação dos projetos pessoais inclui também, claro, um olhar para o sentido dos nossos trabalhos, como expressão da nossa passagem por esse mundo. Essas linhas vêm de sentimentos abafados e coletados a cada conversa (à distância) com amigos, com clientes, com alunos, com colegas de profissão.

A doença é coletiva. O luto é coletivo. Ainda assim, precisamos encontrar meios de continuar e produzir, organizar as coisas práticas apesar do nocaute emocional. Não estar nas estatísticas do dia já vale por si só o agradecimento de poder sentir saudade, cansaço, ódio, ou algo que lembre que temos a sorte de estar vivo.


Paulo Carvalho é professor de Direito do Trabalho e doutor em Ciências jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa. Pode ser encontrado no Instagram.

Paulo Carvalho

Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, coordena o grupo de pesquisa Labuta e é professor de Direito e Processo do Trabalho.