Bemdito

Dos 330 mil, quantos você matou?

Festas clandestinas, churrascos e encontros de fim de semana: não é apenas Bolsonaro que tem as mãos sujas de sangue
POR Jáder Santana
Foto: intervenção sobre imagem da Agência Senado

Festas clandestinas, churrascos e encontros de fim de semana: não é apenas Bolsonaro que tem as mãos sujas de sangue

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Tudo tranquilo. Tomamos as precauções. Vai ser em minha casa, só eu, você e dois amigos super neuróticos com a pandemia, gente que usa duas máscaras, que carrega álcool gel na bolsa, que lava as mãos a cada meia hora. Não, relaxa, vai ser em ambiente aberto, ao ar livre, lá tem muito vento, só os amigos próximos, menos de dez pessoas, uma galera consciente. Eu mesmo tenho filho pequeno em casa, se tô indo pra essa festa é porque sei que vai seguir todos os protocolos sanitários, cheio de álcool espalhado, no máximo umas trinta pessoas, vamos medir a temperatura de todos na entrada. 

Só saí esse sábado porque eu tava mal, porque não aguentava mais ficar em casa, tô presa há um ano, sem festas, sem amigos. Tava ficando depressiva. Não tava dando pra aguentar. Só Deus sabe como tô sofrendo. Precisava espairecer. Mas tomei todos os cuidados, máscara pff2, álcool na mochila. Só encontrei essas quatro amigas, duas já tiveram covid, uma é super cuidadosa e a outra acabou de chegar dos EUA, onde todo mundo já foi vacinado. Preciso ir pra academia, eu tava ficando louco sem exercícios, e tá tudo bem diferente por lá, pouca gente, álcool por todo lado, aparelhos higienizados. Uso máscara até ficar sem fôlego. 

Eu não ia cancelar meu casamento. Sinto muito por tanta gente ter morrido, não consigo nem dormir pensando em tanta família destruída, esse genocida no poder, detonando o Brasil, mas eu não podia cancelar meu casamento. Sonho com isso desde que era criança, já tava tudo certo com os fornecedores, muita gente já tinha comprado passagem, tava com hotel reservado. Tu entende que não dava pra cancelar? Mas fiz questão de tomar todos os cuidados, inclusive com os funcionários do buffet. Comprei máscara boa pra todos, dei um tubinho de álcool pra cada um, medi a temperatura de todos mundo que chegava. Mas eu não posso parar minha vida por causa disso. 

Não dá pra fechar igreja. Se a gente não ajoelhar e rezar, isso não vai terminar nunca. Tenho que ir à missa ao menos uma vez por semana, no fim de semana mesmo. A igreja é espaçosa, as pessoas ficam espalhadas, todo mundo de máscara. A gente tem é que se agarrar a Deus nessa hora, é a única solução. Eu não ia deixar de comemorar meu aniversário pelo segundo ano consecutivo. Não mesmo. Sou a pessoa mais consciente do mundo, participo de todo panelaço contra Bolsonaro, ajudo quem perdeu o emprego, faço doação de quentinha, mas eu não ia abrir mão dessa comemoração. Eu preciso disso, entende? É uma questão de sanidade. 

Eu dispensei minha diarista enquanto foi possível. Continuei pagando durante uns dois ou três meses no ano passado, quando a coisa tava feia. Mas não dá pra continuar assim. Minha casa tá uma bagunça, as crianças estão em casa, não tenho mais cabeça pra nada, só quero deitar e chorar. Eu queria pagar Uber pra ela vir e voltar, mas o dinheiro tá curto. O que eu fiz foi flexibilizar os horários dela, pra ela não precisar pegar ônibus lotado. Não é o ideal, mas é o que a gente consegue fazer. A gente só pegou uma praia, não tem problema. Sabe como é? Muito vento, muito céu, muito espaço. Levamos nossa caixinha de som e ficamos longe de todo mundo, só nós cinco. E a gente se cuida, é todo mundo responsável aqui. 

Quantas desculpas você contou em um ano? Quantas pessoas você matou desde março de 2020? Quantos, dos 330 mil mortos, desviveram por sua causa? Quantas famílias você destruiu? Quantas carreiras você interrompeu? Um colega de trabalho, o vizinho do prédio ao lado, o ator de novelas, o cantor mineiro, a mãe da empregada, a funcionária do buffet, o entregador do iFood. Meu irmão mais velho. Quantos desses você matou?

Como é matar alguém?

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.