Bemdito

O que foi feito do tempo?

O retorno ao convívio social revela a dificuldade de entender as mudanças causadas pela pandemia
POR Leonardo Araújo

Dia desses li uma matéria  que me chamou particularmente a atenção. Das 1.160 palavras acrescidas à 6ª edição do dicionário Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), da Academia Brasileira de Letras, 65 (5,6%) têm a ver, direta ou indiretamente, com a pandemia. O texto trazia também a informação de que a última vez que tal quantidade de vocábulos, relativos a um mesmo evento, foi adicionada a nosso idioma o mundo ainda estava às voltas com a 2ª Guerra Mundial.

Isso fez reverberar uma impressão que vinha ganhando forma, e a qual cheguei a compartilhar com algumas das pessoas com quem tenho dividido a vida enquanto escapo das armadilhas da solidão que, nesses tempos estranhos, se anuncia de forma tão renhida. Talvez, como a geração que vivenciou esses dois grandes conflitos e todas as transformações que eles provocaram, estejamos diante de um campo de sentidos profundamente fragmentado. Daí as tentativas, mais ou menos angustiadas, de criar palavras e outras formas de expressão para dar conta do constante sentimento de desencaixe, de que nada será como antes. 

 A perda da possibilidade dos encontros e dos rituais sociais que marcam os ciclos da vida coletiva são dois dos efeitos mais marcantes desse processo, gerando uma dificuldade inédita de contabilizar o tempo. Quase dois anos se passaram desde o primeiro decreto de lockdown no país, mas a impressão é de não saber onde foram parar os dias, as semanas, os meses que continuaram a se suceder sem que nos déssemos conta.

Com frequência, ao me olhar no espelho ou nas telas dos dispositivos, reconheço novas marcas no rosto, a profusão de pelos brancos na barba. E, no entanto, continuo a me perguntar, dia após dia, o que foi feito do tempo que não vivi. Pois a sensação que fica é a de que estamos lidando com a perda de uma série de referentes que nos lançou em uma indeterminação difícil de simbolizar. Que, por hora, nenhuma experiência integrativa nos é possível, em razão de não fazermos ideia do que nos espera no futuro. Estará a pandemia perto do fim? Será essa suposta volta à “normalidade” apenas a antecipação de alguma nova onda? Teremos definitivamente adentrado uma “era” marcada por eventos catastróficos em escala global?

Se, como diz Heidegger, o modo como nos projetamos no tempo é o que confere sentido ao Ser, as incertezas a respeito do que virá e a fratura simbólica causada pela pandemia fizeram com que o repertório de experiências com o qual vínhamos nos virando até então deixasse de funcionar a contento. E com isso, uma série de novas modalidades de sofrimento aparece como sintoma, deixando-nos como tarefa encontrar meios de elaborar um duplo trauma: o da perda de mais de 600 mil vidas e o de termos como presidente um sujeito que continua apostando na morte e na desinformação como estratégia de permanência no poder. 

Em meu caso, tudo isso ficou mais evidente quando voltei a circular por alguns dos lugares que me eram tão caros e aos quais não tornei antes da diminuição dos números do COVID e de tomar as duas doses da vacina. Pois ir à rua passou a representar para mim um encontro radical com o tempo.

 Das paisagens que me conferiam um lugar de familiaridade pouco restou. Talvez apenas seus contornos, os quais abrigam agora a transformação acelerada de tudo que, antes, costumava dar a sensação de casa. “Fortaleza anda triste, mudada”, penso. Por vezes, percorro suas ruas com a sensação do expatriado que acaba de retornar, tentando desesperadamente estabelecer outras ancoragens, em meio a movimentação confusa das águas do presente. 

Tentar fazer sentido é trabalhoso, cansa. E no mais das vezes parece apenas a repetição do murro em ponta de faca. Outro dia, ouvi de um velho a seguinte frase: “Eu não entendo mais é nada”. Isso me pôs a pensar longamente, já que parece haver mesmo uma verdadeira sabedoria em abandonar, por vezes, a laboriosa costura que nos prende ao solo do que pode ser dito e compartilhado. Assumir isso talvez seja a melhor maneira de construir outra relação com o tempo e com sua passagem. Como disse Caetano Veloso em Oração ao Tempo, “Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo, tempo, tempo / Num outro nível de vínculo / Tempo, tempo, tempo, tempo”.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.