Bemdito

Crime e castigo: nossos delitos de todos os dias

O padrão de encarceramento brasileiro que poupa criminosos brancos privilegiados e encarcera jovens negros precisa incomodar
POR Alex Mourão

O padrão de encarceramento brasileiro que poupa criminosos brancos privilegiados e prende jovens negros precisa incomodar

Na coluna de hoje, quero fazer uma provocação. Sim. Até mesmo ser chato. Hoje eu quero que o leitor e a leitora se incomodem.

O caro leitor ou a cara leitora já parou para se perguntar por que as pessoas que estão nas prisões são, em sua maioria, pobres? E pretas? Já parou para pensar?

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada três pessoas presas no Brasil, duas são negras. O percentual de pessoas brancas no sistema prisional diminuiu 19%. Em compensação, o índice de pessoas negras aumentou 14% nos últimos anos.

E essas pessoas são jovens: quase um quarto da população prisional (24%) tem entre 25 e 29 anos. São muito jovens, mais de um quarto da população prisional (26%) tem entre 18 a 24 anos. São quase pretos. Quase brancos, como na música de Caetano e Gil.

São jovens de baixa escolaridade e que tem em sua origem ambientes sem qualquer tipo de estrutura social ou educacional do estado. Além de lugares violentos e marginalizados. Esses jovens, que desde sempre viveram em situação de vulnerabilidade, com a constante negativa do estado em suas comunidades, agora estão nos presídios.

Já parou para se perguntar por que essas pessoas estão presas? A resposta fácil será: porque cometeram crimes.

Agora tenho uma péssima notícia para você: para problemas complexos, respostas fáceis são verdadeiras armadilhas. As respostas fáceis induzem ao erro, principalmente em problemas complexos como o do encarceramento em massa no Brasil.

Pense comigo. Se as pessoas que estão presas – em tese, como a resposta fácil faz crer -, assim estão porque cometeram crimes, então por que outras pessoas que também cometeram crimes não estão presas? Nova resposta fácil: porque o Brasil é o país da impunidade.

Será que somos mesmo o país da impunidade? A nossa população carcerária, nos últimos 20 anos, mais do que triplicou. Isso mesmo, saltou de 230 mil pessoas em 2000 para algo em torno de 800 mil em 2020. “De jovens pretos”, para referenciar novamente a música. Além disso, mais de um terço dessas pessoas não tem qualquer condenação.

Parece que não é tão acertada assim a resposta “país da impunidade”.

Os dados oficiais mostram que o tráfico de drogas é a causa de quase 30% das prisões. Roubos e furtos, juntos, levam em torno de 35% das pessoas presas. Então só existem os crimes de tráfico de drogas, roubo e furto no CEP das pessoas pretas e periféricas?

Quem estamos prendendo? Por que estamos prendendo? Sim, nós que estamos fora, estamos prendendo.

E você? Já se imaginou preso? Mais uma resposta fácil: “não, não pratico crimes”. Ops… será que não? Gato de energia elétrica? Uso de documento falso? Produtos piratas? Sonegação de impostos? Carteira de estudante falsa ou uso da carteira do primo? Furto? Condutas relacionadas a drogas? Fraude em licitações? E os crimes de trânsito? Beber e dirigir? Atestado médico falso?

Não? Nenhum? Nunca?  

São mais de 1,6 mil tipos de crimes no ordenamento jurídico brasileiro. E olha que nem estou falando de contravenções penais. Será que algum de nós – me incluo aqui neste texto, que é também uma pesquisa antropo-sócio-criminológico – é assim tão puro e imaculado?

E por que não somos presos? Porque somos brancos, temos nível superior, empregos bacanas ou fontes de renda razoáveis. Falei essas características porque elas são praticamente ausentes entre as pessoas que estão presas, que são pretas, jovens, sem ensino formal, sem emprego e sem renda. Em sua esmagadora maioria.

Não te incomoda saber que alguém é preso porque não se encontra nessa situação de privilégio, porque não atende a esse padrão? O seu, o nosso padrão?

Pior: não incomoda saber que não seremos presos porque dificilmente um policial vai nos abordar de forma mais truculenta? Me incomoda.

Não é estranho que o perfil dos(as) presos(as) seja o mesmo das pessoas que são esquecidas pelo Estado. Em verdade, parcialmente esquecidas, porque o Estado sempre se lembra delas quando precisa fazer barulho e realizar operações espalhafatosas. E matar. E prender.

Parece que, mais uma vez, Caetano e Gil estão certos, quando cantam na canção Haiti: “Mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos / Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres / E pobres são como podres / E todos sabem como se tratam os pretos.”

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.