Bemdito

O inquilino silencioso

Lições que o mofo traz após quarenta dias sucessivos de chuva em Fortaleza, a terra do sol
POR Raisa Christina

Por quarenta dias seguidos, chove em Fortaleza, cidade que estampa em seus cartões-postais praias impecavelmente ensolaradas. As precipitações superaram expectativas por parte dos departamentos de meteorologia. Dentre os fenômenos típicos da estação chuvosa, como alagamentos, onda de viroses, guarda-chuvas disputados e sapatos mal cheirosos, um deles tem me tirado o sossego: o tal fungo esverdeado, também conhecido como mofo, que se espalha pelos espaços úmidos e carentes de luz.   

Depois de lavadas, as roupas mal secam no varal. Sobre móveis, pinturas em tela, equipamentos musicais e eletrodomésticos, espalha-se uma camada levemente molhada. O piso de taco, as portas e as janelas de madeira incham. Nesse cenário, instala-se o inquilino indesejado, que vai se espalhando em silêncio, feito espião, a manchar o verso dos quadros pendurados na parede e as malas guardadas no fundo dos armários. É como se o mofo e o bolor resolvessem atacar todas as coisas que deixo de olhar, que esqueço por descuido ou abafo intencionalmente.

Os fungos vão se alastrando com o vento, decompondo materiais orgânicos, transformando-os em nutrientes para o solo. Entretanto, no interior das casas, se há infiltrações pelas paredes ou áreas escuras e sem ventilação, o mofo se propaga e pode causar, dentre outros males, crises alérgicas e problemas respiratórios aos habitantes. Nada daquilo que se mantém estagnado, emudecido e fechado a sete chaves costuma gerar bons frutos.

Pelo contrário, os fluidos e as secreções devem correr pelas vias do corpo, auxiliando processos de respiração, digestão, lubrificação, manutenção da temperatura e demais funções dos sistemas vitais. Se permanece imóvel durante longo período, em local privado de luz solar, o corpo no seu sentido amplo tende a adoecer. Portanto, temos valorizado as breves aparições do sol pelas manhãs. Abrimos as janelas para que a luz e o calor penetrem os vãos. Saímos a caminhar. Estendemos as toalhas e os lençóis. Observamos objetos que temos acumulado dentro do guarda-roupa e no alto das estantes, alguns tomados pelo mofo, e nos damos conta da inutilidade de boa parte deles.

Talvez a ação desses fungos da necessidade de nos livrarmos dos excessos, de agirmos com generosidade, de arejarmos os espaços, assim como o corpo e o espírito. Como agentes que trabalham duro na renovação dos circuitos, os fungos nos apontam: as palavras que naufragamos por dentro dia-a-dia, os atos de proteção exagerada e repressora que por vezes realizamos conosco e com os outros, as coisas amontoadas que não utilizamos mais, os pedaços de nós que asfixiamos na penumbra. Se estivermos atentas, o mofo trará algum aprendizado.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.