Bemdito

Meu sapato é 36

O que cabe na imensidão do seu tamanho?
POR Suyá Lóssio
Foto: Henri Cartier-Bresson

Eu sou do meu exato tamanho. Por vezes tento me espremer pra caber nos lugares. Na saída depois do trabalho com colegas que não tô muito afim. Na obrigação de receber parentes queridos num pós-operatório em que nem consigo levantar da cama direito, mas finjo lá cara de paisagem pra não ser rude. Num livro que comecei e acho que preciso dar uma chance porque vai que melhora no próximo capítulo. 

Mas tenho, aos poucos, entendido meu tamanho. Olho para as mãos e vejo se hoje é dia de cozinhar, brincar com a salsinha fingindo buquê cheiroso, ou se vai fazer um calo por desgosto na metade do corte dos legumes, uma sensação de obrigação na boca. A mão fala também se cabe o toque, cabe uma massagem no meu pé ou no pé do meu companheiro no fim do dia, ou se ela quer só estar fazendo nada com o resto do corpo assistindo Netflix. 

O pulmão e o coração às vezes me falam se a rua está estranha no retorno na padaria ou se o caminho está seguro. Eles avisam para os pés se o caminhar pode ser livre ou se aperto o passo. Pode nem ter motivo óbvio, não tem ninguém me perseguindo, nenhuma cara fechada vindo na mesma calçada. Mas o corpo diz se quer ou não estar ali. Quando quer, flutua. Pulmão e coração seguem tranquilos num ritmo que parece sono debaixo da sombra. O caminho me cabe.

A voz também fala do meu tamanho. Tem oi que quer virar abraço. Quer levar a pessoa pra casa, oferecer um café e entrar numa conversa interminável sobre absolutamente qualquer coisa, porque quer a pessoa. Não digo sexualmente (tenho na memória ter ouvido comentários de que Freud diria que amigos são pessoas que queremos comer em alguma instância. Imaginação ou não, faz certo sentido). Mas digo de querer junto mesmo, de vem cá. Quando não me cabe, o oi fraqueja na voz, parece uma justificativa, uma esbarrada desastrosa na fila do caixa. Dá vontade de sumir. A voz quase chora tentando perguntar que diabo ainda estou fazendo ali. Não te cabe, menina. Vai tomar um sorvete que isso não é dor de garganta não, é só falta de abraço em você mesma.

A gestalt-terapia diz que mente e corpo e eu somos uma só. Aqui também entendo que a voz que me leva pro abraço, a mão que massageia o pé no fim de noite, o pulmão que não deixa entrar mais um centímetro de ar se a rua estiver esquisita são eu, esse complexo que não se subdivide a não ser pra brincar nos textos. Ou não deveria, porque tem muita teoria que subdivide sim, só não compactuo – lembrando que não há verdades, é tudo uma grande invenção.

Pois bem, esses eus tem me dito o meu tamanho, e que se a cadeira do restaurante que saí com os colegas não me cabe, é melhor deixá-la vazia e ocupar a da sorveteria ao lado. Que o café quentinho com um oi que virou uma pessoa querida, deixa a voz um veludo. Aquela respirada funda numa caminhada qualquer, diz que o caminho é esse mesmo.

Suyá Lóssio

Formada em Letras-Português e graduanda em Psicologia. Auditora Fiscal do Estado do Pará.