Bemdito

A luta por direitos na capital amazônica

Uma entrevista com Hugo Mercês, advogado e ativista pelos direitos humanos na capital amazônica
POR Ricardo Evandro

Atuar como advogado, militante pelos direitos humanos, em diálogo com movimentos sociais, em uma das capitais mais violentas do mundo, de um estado que tem a cidade com o pior IDH do Brasil, fez com que a entrevista na coluna de hoje fosse com Hugo Mercês. Nascido no agreste da Bahia, mas radicado em Belém, capital do Pará, Hugo enfrenta os desafios de exercer a profissão que, como teria dito Sobral Pinto, “não é para covardes”. Sobre trabalhar na região amazônica, sob tantas tensões políticas e desafios humanitários, Hugo pôde falar mais sobre ser um jovem advogado militante e sobre como tem sido influenciado pela psicanálise, pelo movimento negro e LGBTQI+.

BEMDITO // Fale um pouco de você, das suas origens e da sua formação profissional.

Hugo Mercês // Nasci no agreste da Bahia, na cidade de Feria de Santana, e vim com minha família para Belém aos quinze anos de idade. Aqui terminei meus estudos de Ensino Fundamental na rede pública; conclui o Ensino Médio como bolsista de um colégio particular; em 2007 ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará e fui a primeira pessoa de minha família a ter uma formação universitária. Advogo há quase uma década nas áreas de Direito Público e Direito da Antidiscriminação na Amazônia, com atuação profissional em todos os poderes e em todos os âmbitos da federação. Tenho uma relação de pertencimento com a luta das pessoas pretas e LGBTQIA+, atuando desde o início de minha carreira em demandas pertinentes à estas temáticas.

BEMDITO // Quais os maiores desafios da advocacia numa grande capital amazônica, especialmente feita por alguém que não vem de família de medalhões do Direito e que se posiciona como militante em defesa dos direitos humanos?

HM // A insegurança financeira é o medo que mais assombra as advogadas e advogados, não sendo incomum que este medo gere adoecimento logo no início da carreira, o que leva muitas pessoas a desistirem de prosseguir na advocacia. Além disto, não fazer parte das oligarquias jurídicas (ou financeiras) costuma dificultar o tráfego profissional das advogadas e dos advogados no Sistema de Justiça, pois estas instituições seguem, em alguma medida, permeadas de relações cordiais. A advocacia em Direitos Humanos costuma potencializar os desafios profissionais, porque envolvem risco também à segurança pessoal da(o) advoga(o) que atua na área. Não é incomum relatos de violência estatal e empresarial endereçada às advogadas e advogados tidos como “advogadas(os) dos direitos humanos”. Também a insegurança jurídica é um problema à advocacia, porque o Sistema de Justiça ainda não está alinhado à lógica constitucional de observância aos seus próprios precedentes, bem como costumam inobservar a jurisprudência dos tribunais superiores. Por fim, a morosidade na prestação jurisdicional gera, além de um problema formal na prestação do serviço público (os órgãos do Sistema de Justiça prestam serviço público), costuma dificultar a relação da(o) advogada(o) com seus clientes. Este ponto é, provavelmente, a angústia cotidiana de toda(o) advogada(o) comprometido com a administração da justiça, pois somos testemunhas do sofrimento que a morosidade na resolução das demandas judiciais causa em nossas(os) clientes. A perspectiva de uma pessoa que busca um escritório de advocacia é ver, num tempo razoável, a solução formal de sua demanda, seja numa defesa criminal, seja uma lide civil. Ocorre que este processo (antes de ser um processo judicial) está revestido de subjetividades que nós, advogadas e advogados, não somos preparados para lidar. Durante um percurso processual, por exemplo, exigimos que nossas(os) clientes revivam determinados traumas, quando numa audiência a pessoa é chamada à falar sobre uma dada violência que sofreu. Esta situação fica ainda mais difícil quando lidamos com os direitos das mulheres, pois o Sistema de Justiça ainda não elaborou da maneira adequada o machismo estrutural que atravessa a postura de muitos agentes públicos (aí inclusos advogados e advogadas também).

BEMDITO // Muito se fala de tratamento humanizado, especificamente na área da saúde. Mas quanto ao mundo jurídico, à advocacia, feita em uma das capitais mais violentas do mundo, pergunto: como é possível fazer uma advocacia atenta aos traumas que superam o indivíduo e o atingem de modo estrutural e estruturante nossa cidade? Para ser mais direto, de que modo se pode exercer a atividade de advogado em um país marcado por tantos traumas históricos e que prosseguem, nestes tempos pandêmicos?

HM // Umas das máximas que mais acompanham o trajeto das advogadas e dos advogados é a frase do saudoso Sobral Pinto, segundo o qual a advocacia não é profissão de covardes. Esta é uma frase que, apesar da potência simbólica de sua estrutura, coloca nos ombros das pessoas que estão começando na Advocacia um peso assombroso. O que significa não ser covarde?! Qual o preço de não ser covarde quando estamos diante das violências que permeiam vida profissional das advogadas e advogados na Amazônia?! Quando escuto esta frase, sempre tomo o cuidado (presunçoso) de complementá-la: a advocacia não é uma profissão de covardes, mas também não é uma profissão para heróis e heroínas. Advocacia é profissão para seres humanos. A partir desta perspectiva, busco devolver à advocacia seu lugar de humano, o que, por mais paradoxal que possa parecer, permite que as advogadas e advogados se encorajem também para reconhecer seus limites e trata-los com a realidade que exigem.

BEMDITO // Como a psicanálise lhe influencia na sua formação e no exercício diário do seu trabalho como advogado?

HM // Quando comecei a estagiar no Ministério Público do Trabalho (a bolsa-estágio do órgão era muito generosa), iniciei minha análise pessoal (isto faz quase 13 anos). Colocar-me no divã me ajudou a reconhecer meus limites, fazendo-me mais autêntico. A partir da constituição de minha autenticidade, pude exercer minha advocacia com mais segurança e atenção. Muitas vezes, nos nossos percursos profissionais, somos cobrados como se fossemos capazes de suportar tudo, de resolver tudo, de dar conta de todas as missões. Esta percepção mítica costuma nos levar a um penoso lugar de angústia. Neste sentido, minha análise pessoal e meus estudos psicanalíticos me ajudar a organizar meus espaços internos, impulsionando meu processo de amadurecimento pessoal, permitindo-me manejar questões complicadas com mais serenidade. Além disto, a psicanálise me ensina sobre a importância da escuta. Advogar significa falar pela(o) outra(o); ocorre que, para falar pela(o) outra(o), antes é preciso escutá-la(o) – e isto não nos ensinam no Direito.

BEMDITO // Belém, Pará, região amazônica e o resto do país são marcados pelo racismo contra negros e indígenas, pardos, LGBTQI+. Ser advogado negro, homem e negro é fazer parte de uma exceção dentro desse contexto local, regional e nacional. De que modo é possível resistir à violência cotidiana e o que você diria para estudantes de Direito, quem se deparam e se depararão com essas violências?

HM // Reivindicando minha ancestralidade, o símbolo do meu escritório é um carcará, uma ave sertaneja que costuma sobreviver às adversidades. Advogar me ensinou que um carcará sozinho não faz sertão. Uso esta imagem para ilustrar que o compartilhar de experiências com outras(os) advogadas(os) é fundamental para prosseguir. Também é fundamental escutar os reclames do corpo, pois advogar não é suficiente para preencher nossa existência. Advocacia é de corpo inteiro, mas não pode ser o tempo inteiro.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.