Bemdito

A luta diária pelo reconhecimento

Sobre a ameaça constante de não encontrar afetividade no outro ou garantia de direitos
POR Cláudio Sena

Não se vive sem reconhecimento. O mínimo que seja. Porém, coloca-se, antes mesmo do ato de reconhecer, o existir. Eu sou e sei do outro. Tal processo não ocorre do nada. Para o filósofo Axel Honneth, é nos enclaves e nas frestas do amor, do direito e das sociabilidades estabelecidas que tal reconhecimento recíproco opera. 

No sentido do amor, o indivíduo enquadraria todas aquelas ligações emotivas que atraem ou repelem familiares, amigos, amantes. São essas as emoções fluidas, maiores e menores, de acordo com a fase do indivíduo e com as circunstâncias: na dependência absoluta que a criança no berço tem em relação aos pais e no distanciamento necessário no caso do jovem recém-casado que solicita emancipação. Do casal apaixonado, condicionado ao sexo romântico, aos sadomasoquitas que podem gerar emoções eróticas “desfiguradas” (aspas!) e “controversas” (aspas, novamente) em relação ao sexo convencionado e comportado. Papai-mamãe x dominatrix e seu servo. 

Caso o reconhecimento não se dê pelo amor ou por sinais de emoção, há mais uma chance pelo Direito, pela estrutura jurídica supostamente assegurada para todos do mesmo modo. Honneth aponta este reconhecimento como aquela nossa escala constitucional de direitos e deveres, onde as leis servem de guia da equidade, sem exceções e privilégios. Liberdade, educação, bem-estar, entre outros valores seriam pressupostos do coletivo e do individual. Nestes termos, o CEO da megacorporação seria igualzinho ao operário do chão de fábrica. Fácil de entender, mas, como já sabemos, difícil de aplicar. 

Fora da esfera sentimental e jurídica, existiria um reconhecimento que se desenharia no seio das relações sociais visíveis ou invisíveis. Dada pelo contexto, pelo prestígio social e pela reputação, os indivíduos reconhecem o outro e a si dentro de grupos determinados. Indícios dados por status, estigma, biografia, princípios neste reconhecimento, podem ocorrer de maneira gradual. Parece existir um parâmetro de medida, categorias distintas de respeito, um nivelamento sujeito às variações e mesmo ao rebaixamento. Cuidado. A mulherona, o homão recheado de qualidade, respeitados, babados, ovacionados estariam ambos sujeitos a virar um ser pequeno e até mesmo a ser alvo de exclusão. 

Diante da estruturação do filósofo, é possível que você, eu e aqueles mais atentos, observem o nosso social e passem as realidades individuais nessa peneira epistemológica. Mas há outra questão. Não foi aleatoriamente que o autor denominou o livro que trata desse tema como “A Luta por reconhecimento”. O que fazem aqueles que não têm margem para nenhum dos reconhecimentos? O que fazem os já reconhecidos endurecerem o pescoço e evitarem trocar olhares com os excluídos e os invisíveis? Estaríamos condicionados a sentir algo sempre? Pena, tristeza, piedade, raiva, solidariedade, amor? 

A falta de reconhecimento que pode nos assolar, essa ameaça constante de não encontrar afetividade no outro ou garantia de direitos pelo documento oficial, é, sem dúvida, dolorosa. Sobra muito pouco àqueles que não podem contar nem com o amor, nem com as leis, nem com a consideração ou com o respeito dos demais. No âmbito dos grandes centros urbanos, onde animais irracionais, plantas e fenômenos naturais se colocam em segundo plano, a relação entre humanos parece ser fundamental. Não nos esqueçamos disso.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.