Bemdito

Stalker: o jardim alienígena do desejo

Um ensaio da teologia do desejo a partir da peregrinação no Éden alienígena
POR Ricardo Evandro
Foto: Reprodução

Stalker (1979) foi dirigido pelo famoso e hermético diretor russo Andrei Tarkovsky. Não tem o timing dos filmes americanos. Por isso, para quem cresceu vendo Hollywood, é de se estranhar e pode causar certo cansaço.

Não conhecia Tarkovsky até certa vez, quando, nas sessões do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), o professor Marco Antonio Moreira (UFPA) me disse que os filmes do diretor soviético são como uma “missa”. Não me esqueci da metáfora. Depois pude realmente entender melhor esse comentário de Marco Antônio, quando assisti Solaris (1972), em Belém, no Cinema Olímpia – o cinema em funcionamento mais antigo do Brasil. 

É uma missa porque mais parece um ritual, talvez de traços iniciáticos, mas também um ritual de glorificação do cinema. Stalker reencena os dramas da existência humana, como a finitude, o amor, os mistérios da natureza, do próprio inconsciente humano, sobretudo as nossas fraquezas, os nossos fracassos. 

Tarkovsky prepara seu público, iniciando-o na sua própria gramática audiovisual. Seus roteiros fogem de explicações biologicizantes, naturalistas. Diria que são filmes de ficção científica mais ligados às Humanidades, à poesia, à psicanálise. Mas destaco aqui o tema teológico, muito presente em Stalker.

Há três personagens centrais, como três romeiros numa peregrinação em busca de esperança: um escritor, um cientista e um stalker. E diria que eles são a própria representação da poesia, da ciência e da ética, respectivamente (poiésis, theoria e práxis). 

O stalker, o homem da responsabilidade, do dever, do cuidado com a natureza do “lugar”, é uma espécie de transportador, guia, para esse lugar misterioso, onde aliens teriam nos deixado, talvez por acidente, talvez como presente. A Zona é um grande jardim abandonado, cercado por um Exército. Mas o stalker sabe como adentrá-lo, como se ele oferecesse uma chance de retorno ao Éden. 

A Zona é o lugar onde são realizados os desejos. É a única e última chance de se falar e se realizar o que se disse – por isso, a analogia com o Éden, o jardim onde palavras e coisas estão unidas (Walter Benjamin). Mas aí, entram muitas questões:

1) A questão feita pelo escritor: “Eu quero mesmo o que desejo?”;
2) Outra, posta pelo cientista, que também é professor: “E se a Zona cair em mãos erradas?”;
3) E a última, feita pelo stalker, o guia espiritual do escritor e do cientista: “Vocês não têm fé?”.

O filme vai se revelando como um diagnóstico do presente pós-industrial, úmido, enferrujado, alagado, sujo, cheio de limo, e abandonado. A peregrinação se revela como uma procura pela fé perdida pelos homens em meio aos seus pecados e aos seus fracassos profissionais e amorosos. Tarkovsky faz aquilo que o escritor, que representa a poesia, diz: a tecnologia é uma prótese, uma muleta, e a humanidade foi mesmo feita para fazer arte. 

O filme inicia com um som forte de trem, numa cidade de indústria nuclear, e se encerra com este mesmo som, mas com a icônica cena da filha do stalker movimentando um copo com a mente. Nesta última cena, um detalhe importante: em cima de uma mesa, perto da cama da família do stalker, há uma maçã mordida. O fruto violado é o pecado original presente na vida humana expulsa do Éden, expulsa da Zona, onde estamos atrás dos nossos desejos dos quais não sabemos.

Stalker é sobre nossa condição na Terra: erráticos, peregrinando sobre uma terra poluída pela nossa tecnologia; numa Babel de línguas, cada vez mais sem poesia, como na comunicação entre um casal de amantes em profundo desamor, em profunda falta de correspondência entre o que falam, o que fazem, quem são.

Tarkovsky é nosso stalker nessa romaria, mas também um cientista, no uso de suas técnicas de som e imagem em movimento, e, por fim, um poeta. E como poeta, Tarkovsky nos coloca numa experiência verossimilhante, num “espaço de jogo” (Hans-Georg Gadamer), onde e quando o próprio filme se torna uma peregrinação, uma romaria. 

O diretor russo, filho de um poeta e criado numa família católica ortodoxa, coloca seu público num fluxo retórico, enquanto “arranjo direcional”, travessia reconfiguradora por imagem, memória e som, onde e quando tal experiência é imprevisível sobre onde se pode chegar (Roberto Wu), do mesmo modo como a paisagem da Zona está sempre em mudança, de geografia e arquitetura imapeáveis.

A peregrinação de Tarkovsky, dos seus personagens e de seu público segue o mesmo canal, o mesmo caminho, numa experiência sem divisão entre sujeito e objeto, permitindo que a verdade sobrevenha numa “zona” comum, de espacialidade e temporalidades comuns – ou ficando cada  vez mais comuns, conforme o filme se desenrola.

Lembrando o título do livro do próprio diretor, Esculpir o tempo (1984), Tarkovsky nos guia na experiência da temporalidade própria de seu cinema. Stalker também é metalinguagem sobre a experiência hermenêutica da arte, a qual nos implica num demorar-se que supera, neste conduzir, a diferença entre as temporalidades do filme e do espectador.

Em contraste ao que comumente se diz sobre Stalker, sobre como a obra teria previsto o acidente em Chernobyl, nos anos 80, em verdade, Tarkovsky talvez esteja mais falando de um passado, o qual ainda rege o presente, enquanto princípio (Arché) arqueológico, arcaico e arquitetural (Giorgio Agamben): a memória da nossa expulsão do Éden (Gênesis 3: 23).

Stalker talvez seja sobre nossa expulsão do Paraíso, sobre o vento do progresso que nos trouxe e não cessa de nos trazer ao presente em iminente catástrofe (Benjamin). Mas a obra não se limita ao tom errático e apocalíptico. Pois a travessia mesma é sobretudo uma busca pela esperança, pela fé perdida, por uma paixão de se viver.

Na cena em que o personagem do stalker atravessa uma janela, arruinada sobre um poço fundo, Tarkovsky o faz recitar um de seus poemas mais belos, num tom de sabedoria salomônica, ao nos lembrar de termos fé nas nossas paixões, nos nossos ideais, e de sabermos que é justamente pela fraqueza que a vida vence a morte, como a Paixão do Cristo moribundo a venceu ao fim de sua via crucis:

Que se cumpra o idealizado.
Que acreditem.
Que riam das suas paixões.
Porque o que consideram paixão, na realidade, não é energia espiritual…
mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo. 


O mais importante é que acreditem neles próprios…
e se tornem indefesos como crianças…
porque a fraqueza é grande, enquanto a força é nada 

Quando o homem nasce, é fraco e flexível…
quando morre, é impassível e duro.
Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível…
quando se torna seca e dura, ela morre. 
A dureza e a força são atributos da morte…
flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser.
Por isso, quem endurece, nunca vencerá.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.