As cartas e o desejo entre tempos e linhas
O indivíduo não consiste jamais nele mesmo
(G. Simondon)
A nova geração desconhece a emoção da espera do grito do carteiro, o frio na barriga. Quando não havia Internet, as mensagens atravessavam o tempo entre dizer e ler. O intervalo fazia parte dos caminhos percorridos. As distâncias inebriavam os amantes. Nas cidades do interior, a chegada das cartas eram anunciadas pelos programas de rádio. Os destinatários eram chamados às sedes dos municípios para receber suas correspondências.
As cartas, diferentemente dos boletos que se multiplicam nas caixas de correio, se acomodavam dentro de finos envelopes de contorno verde-amarelo. A caligrafia do remetente antecipava parte do ritual do encontro entre olhos, mãos e letras. Por vezes, a correspondência ficava um tempo lacrada, aguardando coragem, ou era rasgada no ímpeto de abri-la. O tempo entre receber e enviar a resposta fazia parte do código amoroso. O simples ato de remeter era um sinal, a vontade de significar o desejo.
Por que recorri novamente à escritura?
Porque na verdade nada tenho para te dizer;
Entretanto tuas mãos queridas receberão este papel
(Goethe, verbete no Fragmentos do Discurso Amoroso)
As cartas eram lidas, beijadas, cheiradas, dobradas, por vezes amassadas, ou guardadas debaixo do travesseiro. Nós, criaturas do mundo digital, mal lembramos do percurso das mensagens de amor cravadas no papel. Mapas desenhados por palavras de intensidade física. Rosa de Luxemburgo, a emblemática revolucionária, escreveu mais de mil cartas a Leo Jogiches, seu amante e camarada. Em uma delas, datada de 21 de março de 1895, diz: Bem, agora serei dura! De verdade. Tenho pensado sobre nossa relação; quando voltar, ponho você na linha de tal modo que você gritará. Espere e verá. Uma carta sustentada entre as mãos parecia carregar a combustão dos sentimentos, uma materialidade tal qual extensão do corpo distante. Pode-se imaginar a feição do amante de Rosa ao ler: aterrorizarei você sem piedade até que se torne mais suave.
As cartas revelam tanto do amor quanto qualquer ensaio filosófico, antropológico, psicanalítico. Deixam entrever a dimensão sinuosa da linguagem, a eficácia do jogo de revelar e esconder, o agir das metáforas e do não dito. Um dos efeitos do amor é falsificar inúmeras vezes a imagem objetivamente reconhecível, diz Simmel. A linguagem amorosa é por natureza exagerada, pleonástica, se repete para que algo se fixe na paisagem dos afetos. É entremeada de uma dimensão onírica, mágica, condensando ao mesmo tempo singular e universal, o hoje e o para sempre. O amor que se faz em corpo inscrito, que namora, casa, e o imaginário do que se espera em silêncio, num fundo de armário, na posta-restante, milênio, milênios no ar.
Hildebranda tinha uma concepção universal do amor e achava que qualquer coisa que acontecesse com uma pessoa afetava todos os amores do mundo inteiro. Assim, Gabriel García Márquez enuncia a potência do agir dos corpos, dos sentimentos, para além das barreiras do calendário no “Amor nos Tempos do Cólera”. Fermina Daza e Florentino Ariza vivem um romance suspenso por cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Diante do longo casamento de Fermina com um outro, atravessado por uma pandemia que dizimou mais de mil pessoas na Colômbia, na segunda metade do século XIX, entre ecos de uma guerra civil, a trama amorosa se sustenta. É a prima solteira de Firmina, Hildelbranda, que faz nutrir a lembrança do poeta lúgubre Florentino, capaz de escrever cartas de 60 páginas para a jovem amada.
Afora todos os saudosismos, a semântica do amor segue encontrando formas de desaguar em outras escrituras. As ciberpaixões, os encontros por aplicativos se mesclam com imagens, emojis, smiles, efeitos visuais, trilhas sonoras, produzindo uma espécie de neo-romantismo. Transpassando a fria tecnologia, os espaços da Internet criam diversificadas atmosferas, recintos de alta temperatura da alma, como bem diz Ortega. Por não prescindirem do corpo orgânico para atuar como suporte de expressão, os afetos digitais seguem mais velozes, dribldo fronteiras.
Uma vez me interpelaram acerca da veracidade, da solidez de etnografias realizadas no ciberespaço. A pergunta era:
– E se as pessoas forem fakes, estiverem mentindo?
Não precisa ir longe para ensaiar uma resposta. Dentre as representações do eu na vida cotidiana, a paisagem da Internet é apenas uma delas. Assim é o namorismo e suas invenções. Certamente, os protocolos de isolamento social, causados pela pandemia da Covid-19, intensificaram as práticas imaginativas dos encontros, as geografias amorosas móveis, de corpos sem topos, suspensos do insustentável peso das materialidades.
Suponho que parte dos leitores possa estar pensando – quanto lirismo, ingenuidade e ilusão percorrem essas linhas sobre o amor na era da Internet. É que não importa o lugar, o tempo, a plataforma, a tecnologia, o corpo disponível, presencial, o digital, em amor, como bem diz Júlia Kisteva, eu não cesso de me equivocar. Do erro à alucinação, o engano talvez seja coextensivo ao meu discurso.
O diálogo amoroso é tensão e gozo, repetição e infinito, não comunicação, mas encantação. Onde quer que esteja, derrapa e gagueja. Tal qual escreveu Jáder Santana, em artigo recente para o Bemdito, o Facebook deixou de ser uma biblioteca interativa para se tornar um espaço customizado, fluido e organizado por algoritmos que chamou de Feed de Notícias. Embora a nossa navegação esteja arruinada, ela assume um curso irreverente, anárquico, o do desejo. Sábio Lacan. O lógico é odioso ao mundo.
As cartas se recriam fora dos envelopes. Ocupam messengers, directs, whatsapps, caixas de email. Onde houver chispas de vontade, siga a pista das palavras em brasa. O desejo sempre dá um jeito. Faz guerrilha com os algoritmos, sejam complexos, específicos e determinantes. Fabula formas de dar passagem. Implode barreiras, faz de trouxa os haters, porta-vozes da pulsão de morte. Nisso reside a força do erotismo, no transgredir. Bradar contra todas as proibições, minar cancelas, transpassar corpos blindados. Quando o desejo grita carteiro!, levanto-me. Em busca de algo que ainda não sei. Nunca saberemos. Eternos equilibristas entre campos minados de sujeição e cartas de navegação do que chamam amor.