Bemdito

Tal vó, tal neta: tudo o que você precisa fazer é chamar o meu nome

Um elogio ao tempo e às relações de parceria, cuidado e afeto que vão além dos laços de sangue
POR Glória Diógenes
Foto: Grandma Ruby and me (LaToya Ruby Frazier/The Photography Council Fund)

Um elogio ao tempo e às relações de parceria, cuidado e afeto que vão além dos laços de sangue

Meu avô dava grandeza ao abandono
(Manoel de Barros)

Escutei, recentemente, as minas do graffiti Dinha (Alexsandra Ribeiro) e Geórgia Cardoso falarem do lugar das avós em suas trajetórias de vida. As contadoras de histórias, as parteiras, as curandeiras, as que assopram palavras ancestrais. O “patrimônio avó”, como disse Geórgia, assume formas e cores. Inspiradas por suas narradoras memoriais, as duas pintam as ruas. A obra de Geórgia, um “relicário para Úrsula”, foi produzida em grande tela no último Festival Internacional de Arte, o Concreto, em Fortaleza. 

Curiosamente, enquanto ensaiava esses escritos, vi que Tiago Pedro e Caio Faheina, colunistas do Bemdito, também discorreram sobre o universo de suas avós. Lembrei-me da minha, com fortes traços indígenas, nascida em Cascavel, no Ceará, a vovó da Ilha (morava no Rio, na Ilha do Governador). Ela, pianista, espírita, conhecedora de ervas medicinais, de crendices no que não se vê.

Em uma carta (guardo todas), datada de 31 de outubro de 1975, ela escreve na direção oposta ao seu tempo: “continue mostrando que o sexo frágil hoje é quem está na vanguarda. Seja livre.” Tentei seguir à risca. Nas noites insones, quando o medo de alma não me deixava pregar o olho, ela colhia no quintal folhas de cidreira e preparava o chá que apaziguava o escuro.

As avós talvez sejam pontes que atravessam abismos. Narrativas cerzidas entre destinos. Quando Bruna, minha neta, nasceu, percebi como o tempo corre veloz. Filha, neta, mãe e, agora, avó. Eu usava saias curtas, dançava reggae todos os domingos no Café Ritz sob o ritmo da lendária banda Dona Leda. Era faceira e namoradeira. Procurei um fotógrafo e fiz um book. Nada que uma boa dose de whisky não resolvesse. Tinha apenas quarenta e poucos anos e todo o fogo do mundo. 

A menina dessa história nasceu quatro dias depois do colapso das Torres Gêmeas. Havia uma tensão no ar que ela sequer pressentia. Morava ao meu lado. Logo que conseguiu andar, subia e descia do sétimo ao décimo primeiro piso, várias vezes ao dia. Percorríamos livros e livros. Vizinhas de palavras, de histórias, de desenhos, de imaginações. Começamos a escrever narrativas a quatro mãos. Lia em voz alta os escritos e, em seguida ela desenhava, rascunhava sua versão. Uma delas dizia: “o escuro é o primeiro passo para descobrir o seu fantasma”. Assinado: Bruna, 10 anos.

Devia ter uns 8 quando escalou escadas com o coração acelerado e contou uma revelação. Éramos fadas dos desejos. Tocou com as duas mãos no meu rosto e falou:

– Precisamos salvar o mundo. Tem muita gente sem amor, vó.

Durante alguns anos, assim foi. Fabulávamos sobre vidas partidas e íamos cerzindo amores possíveis. Tínhamos dó de gente, só de outras gentes. Vez em quando, ensaiava um sorriso em minha direção e dizia: “vamos assistir “devederes”?” Enlaçava minha mão sentada ao lado do sofá. Visitávamos a Terra do Nunca, os meninos perdidos, o garoto que nunca cresce, a birrenta Sininho e o ardiloso Capitão Gancho. Sagrado é dividir o medo.  

Dizia que ia ser atriz famosa, morar fora do país. Seu papel principal na peça da Escola Vila foi o de vento. Entrava no palco e o vento vapt-vupt passava. Como o vento não volta, não há registro fotográfico. Sem contar o personagem anterior, o de árvore de natal. Permanecia imóvel a peça toda. Sem público, desistiu. Cresceu.

O mundo trouxe outras histórias. Aquelas dos jornais, das notícias, dos desencantamentos. Em 2020, primeiro ano de faculdade, permaneceu à distância. O isolamento instalou a solidão em plena época da efervescência. Em uma de suas ligações diárias de vídeo, em abril do ano passado, conta que o vulcão Krakatoa, na Indonésia, voltou a entrar em erupção. Chorava baixinho. Dizia que isso ia alterar o equilíbrio do planeta, ia comprometer a camada de ozônio. Repetia que se escutou um estampido no céu, como duas tampas de panelas que se chocam. “Vó, tô com medo”. Havia na voz da menina de olhinhos repuxados a inevitável lucidez. 

Fica triste, indigna-se, decepciona-se com colegas bolsonaristas. Diz mal de rapazes que antes admirava. “São machistas, misóginos, tratam as mulheres como se fossem propriedades.” Na escola, ainda adolescente, em uma briga entre colegas, machucou-se. Fui lá chamada. Cheguei e a encontrei arranhada. Tentando conversar sobre o acontecido, falei que já estava crescida, mocinha e que não mais cabia esse tipo de comportamento. Olhos nos olhos, sem titubear disse:

– Vó, acorda, é século XXI. Não tem mais lady, não.

E nem fadas.

Era 23 abril de 2020, outro estrondo invadiu o coração da menina. Atendi o celular. Do outro lado, só escutava urros, um choro-convulsão, um engasgo das palavras. Logo percebi, houve uma tragédia tão grande, tão grande, que ela não consegue dizer. Meu coração descompassava a cada derramamento de dor sem engate entre sílabas. Eram grunhidos, lamentos, gritos de dilaceramento. Implorava: “fala, fala, diz logo quem morreu, Bruna!”. Ela explode:

– Mataram o Felipe, vó, mataram o amor da minha vida.

Não podia dizer “espera, vou correndo”. Chorei junto com ela, deixando as lágrimas escorrerem entre telas. 

Felipe, 18 anos, surfista, também professor de surf, sem antecedentes criminais, “cheio de alegria, amoroso, talentoso”, como dizem os amigos, teve a vida interrompida na Praia do Futuro. Assassinado com vários tiros, tal qual informaram os noticiários, “por motivo torpe”. Quantas balas atravessam sentimentos em carne viva? Interrompido o amor nascente, golpeado antes de ser. 

O mar da violência criou tempestades. A menina, no seu “abril despedaçado”, tremulava o medo. À sua frente o futuro incerto, o vaguear de um chão agitado por ventanias. O tempo da fragilidade misturou-se ao estampido do Krakatoa, à devastação de vidas pela Covid, à dor do amor matado. 

Ainda estamos aqui, Bu. Rascunhando histórias. Infinitas imagens e lembranças traçam o enredo que recriamos. Somos como personagens de seriado, que refazem a trama todos os dias. No nosso particular Gilmore Girls, sou sua Lorelai e você, a Rory. Episódios de dor não calam as meninas. Eternas encantadas entre a palavra que enlaça e o susto sem voz. Pode chamar, “se você estiver fora da estrada, sentindo-se sozinha e com frio, tudo o que você precisa fazer é chamar o meu nome. E eu estarei lá.” Enfrentaremos tempestades, vulcões em erupção, fascismos, machismos, violências, ameaças ditas e veladas de todos os Capitães Ganchos.

Meu canto, tua voz, a minha, teu choro banhado de nitidez, soletra algo certo, mesmo em linhas tortas. Meu colo ecoará mil avós. Narradoras de possíveis. E o mundo se aquietará com o fio do amor esticado entre tempos.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).