Bemdito

Eu apenas queria que você soubesse

Como os tempos e afetos são cultivados de geração à geração, em cantos e sabores
POR Raisa Christina

Como os tempos e afetos são cultivados de geração à geração, em cantos e sabores

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

No começo da semana, a amiga Ellícia comentou que certa tarde se perfumou, arrumou o cabelo, maquiou-se, pôs os saltos e uma roupa bonita para se sentar na calçada ao lado da mãe, que a esperava usando um longo vestido amarelo, muito bem acomodada em sua cadeira de balanço. Apesar de não comungar das mesmas crenças religiosas da mãe, a filha propôs que cantassem juntas as canções da igreja que a mãe tanto gostava e cujas letras estavam manuscritas em seu caderninho de arame. Aquilo mexeu comigo, pois me dei conta de que nunca ouvi minha mãe cantar, logo em nossa casa regada à música desde a vitrola velha de papai nos dias de infância até o corpo de meus irmãos, acoplados a teclas, flautas e cordas de violão. 

Então resolvi telefonar para ela, que há alguns anos voltou a viver no interior com meu pai. Perguntei à mamãe como minha avó costumava preparar a papa de carimã que eu tomava quando criança. Os irmãos não gostavam, nem sequer se recordam hoje da papa, do mingau e do bolo. Contudo trago na memória da língua um sabor intraduzível, nem doce nem salgado, da mandioca mergulhada e amolecida ao longo de tantas luas, depois amassada, escorrida no pano, espremida, moldada em pequenas bolas achatadas e então secas ao sol do sertão, que não se poupa a trabalhos, para enfim serem piladas em golpes certeiros pelas mãos daquela mulher que originou minha mãe.

Essa mulher de nome sereno, registrado assim mesmo no diminutivo, Terezinha, era também aquela que matava a pauladas cobras que porventura surgissem pelo alpendre nos meses de chuva enquanto estávamos por lá. As cobras, peçonhentas ou não, podiam paralisar e matar meu avô de medo. Ela, ao contrário, apanhava com bastante calma o pedaço de pau maciço encostado no canto da cozinha e acertava num único gesto a cabeça do bicho. Não sei dizer o que me ocorria por dentro diante de tal cena, mas simplesmente confiava nela e em seus movimentos muito mais amplos que as palavras. Essas pouco lhe convinham. Achava misterioso pensar que mamãe e seus irmãos, alguns deles enormes a meus olhos da época, haviam nascido daquela mulher pequena.

Mamãe contou que certa vez uma senhora de idade, vizinha de vovó, havia adoecido e deitado na cama por meses. Uma noite vovó ouviu os gritos da senhora, que não conseguia dormir, sentindo dores terríveis. Ela foi ao encontro da mulher e percebeu que suas nádegas estavam cheias de feridas, por onde passeavam larvas de mosca. Como não havia utensílios específicos para a realização do procedimento, vovó fez vários pequenos palitinhos de marmeleiro e, ao banhar a mulher, foi retirando cada larva com muito cuidado. Em seguida, deu-lhe um remédio e a senhora enfim pôde relaxar e dormir, como não fazia há muito tempo. A precisão das mãos de minha avó também se dava no cruzamento repetitivo dos fios, com auxílio de alfinetes, para a confecção de rendas de bilro.

Com a partida de vovó, a papa de carimã se extinguiu na família. Tias e primas, com quem ultimamente procurei conversar, já não sabem como era feito o preparo da mandioca, que podia ser mansa ou brava, contanto que se fermentasse até a raiz descascada amolecer. Mamãe explicou que vovó servia a papa morna aos filhos no café da manhã ou na merenda da tarde. O cheiro da mandioca de molho antes de se transformar em carimã não lhes agradava, mas a papa leitosa e espessa era querida de todos. “Vovó cantava, mãe?”, perguntei ao telefone. “Sim, mas só quando estava só na cozinha pela manhã, nas horas em que seu avô deixava a casa para trabalhar na roça com os homens”. Apenas nessa brecha, minha avó podia ligar o rádio à pilha e cantarolar Teixeirinha ou Luiz Gonzaga enquanto cozinhava.

“E você, mamãe? Por que não me lembro de lhe ouvir cantar?”, indaguei, intuindo que por ali talvez existissem espinhos há anos intactos, quem sabe décadas. “Nunca consegui aprender música alguma. Não memorizo a letra nem a melodia”. Após um silêncio, lembrou-se do episódio em que havia sido flagrada ouvindo música no rádio pelo pai. Ela balançava-se na rede do alpendre e tentava acompanhar a canção que mencionava o voo das rolinhas. O pai, que havia voltado da roça mais cedo que de costume, referiu-se à música como depravada e deu fortes chineladas nas pernas da filha, enxotando-a para o quarto e desligando o rádio. Estava aclarado o mistério, um eufemismo para não se vibrar a língua entre os dentes ao se falar em trauma. Mas sim, ela confessou, desde jovem gostava de escutar Jessé, Osvaldo Montenegro, Hyldon e Gonzaguinha.  

Precisei de trinta e quatro anos para perceber que, na impossibilidade de cantar junto da voz, as mãos de minha mãe e minha avó aprenderam a entoar um canto mudo. Canto que vai se afinando na lida diária com as diferentes matérias, couros, pedras, peles, pêlos, carnes, ossos, galhos, fios, folhas e terras. Por isso tenho reparado nas mãos, raízes móveis que animam a matéria, revelam o tempo e os afetos que se vai cultivando ao longo da vida. Ainda ao telefone, avisei à mamãe que tínhamos um dever: em nosso próximo encontro, cantaríamos juntas “Eu apenas queria que você soubesse”.

Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.