Bemdito

Cancelamento tem pai e mãe

Cancelamento é um filho ingrato que volta para buscar quem o alimentou
POR Simone Mayara

Cancelamento é um filho ingrato que volta para buscar quem o alimentou

Simone Mayara
simonempf@gmail.com

As fogueiras e guilhotinas em praças públicas e arenas de leões só mudaram de forma com a passagem do tempo e o desenvolvimento tecnológico. O cancelamento é a fogueira moderna que, diferente da que queimava bruxas, pode atingir muitas e muitas vezes o mesmo condenado. Diferente da condenação à fogueira, o cancelamento pode ser montado e aceso por quem depois nela vai queimar. Aí troco a analogia das fogueiras para as guilhotinas da Revolução Francesa, pois quem tanto as incentivou pode acabar por perder cabeça à moda Robespierre.

O cancelamento virou um instituto não oficial de destruir reputações e é mais complexo do que só pensar que cada vez mais pessoas têm acesso à tecnologia e às redes sociais. De fato, a falsa sensação de poder falar na nova ágora fez com que se esquecessem de que na Ágora democrática só falavam os habilitados. Mas o pilar para a criação desse monstro, a espinha dorsal, é outra: sinalização de virtudes. A expressão é definida no dicionário Cambridge como: tentativa de mostrar para outros indivíduos que você é uma pessoa boa, por exemplo, expressando opiniões que serão aceitas por eles, especialmente nas mídias sociais. Ainda não é tão popular no Brasil quanto em outros países, mas tudo indica que começa a ser questionado por aqui.

Muito longe das virtudes cardeais de Tomás de Aquino – a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança -, as virtudes sinalizadas precisam antes de tudo parecer a ser, e têm a ver com uma dita empatia e compreensão das dores dos outros, reais ou inventadas, para alimentar esse ciclo de parecer bom. Outro elemento fundamental que ainda não citei: o sentimentalismo. Para participar do cancelamento, é fundamental abrir mão da racionalidade e “tribalizar”. Agir como manada e não questionar – para isso, o apelo sentimental é fundamental.

Com a breve apresentação anterior, temos a base para chegar ao cancelamento. Muita gente falando e uma sociedade na vitrine querendo parecer boa: esse é o cancelamento normal. Adiciono outro elemento para poder falar dos cancelamentos de famosos. Foi-se o tempo em que “artista” é aquele que faz arte e por isso o melhor aqui é famoso. Pois bem, para os famosos, foi feito um panteão de novos iluminados que opinam sobre absolutamente todos os assuntos – e quanto mais polêmicos, melhor. Ascender ao patamar de “fada sensata” é o passe para o engajamento, os contratos e o retorno financeiro. Ganhos comerciais fazem os novos iluminados se animarem na missão que receberam. Repetem trechos curtos e textos fáceis. Reduzir-se #AUmaHashtag que pegue e “suba” fácil é ainda melhor. Sempre assim, uníssonos.

Não acho que trouxe novidades até agora, mas parece-me que, quando levantam o assunto do cancelamento e seus males, algumas pessoas esquecem propositalmente que, como tudo nesse mundo, essa prática não veio do nada. E dou dois exemplos práticos para provar que o cancelamento é parricida.

Gilberto Gil foi cancelado. A frase é ridícula em si, mas se olharmos de perto a história piora. No final de 2020, Gil posou com toda sua família para a campanha de Natal de uma marca de roupas conhecida e tradicional no Brasil. Gil foi atacado porque sua esposa é branca e, segundo os apontadores de defeitos, ele embranqueceu a família – o que jamais poderia ter acontecido, já que, para esses tolerantes de internet, casamento é um ato político. Tem até apelido para isso dentro dos movimentos negros: “palmiteiro”.

A guilhotina que cancelou Gil foi, em parte, armada com a sua ajuda. Não é difícil achar declarações do cantor apoiando conceitos como o racismo estrutural e dívida histórica, pensamentos que são a raiz para ações absurdas como o seu linchamento virtual. Aparentemente, na hora em que o filho que você embalou- o pensamento separatista e violento – volta para lhe cobrar contas… Esquece-se da criação que se deu.

Mas Gil não é digital influencer, construiu a sua carreira muito antes de precisar dançar no TikTok e, mesmo tendo colaborado para o crescimento dessa crença revanchista e cobradora, pode ficar mais difícil de ver a linha direta que quero demonstrar. Então usemos outro exemplo. A pandemia é terreno fértil. Desde que a COVID-19 chegou ao Brasil, os novos iluminados formaram coro: #FiqueEmCasa.

Mas a graça de ser novo iluminado não é só usar o imperativo: faça, fique, compre. A melhor parte mesmo é poder apontar dedos: vocês que questionam o lockdown? Genocidas sem coração. Vocês que estão aglomerando: irresponsáveis desmerecedores de perdão. Essa é a outra graça de ser um novo iluminado: decidir quem não deve ser perdoado. Quando essa ira dos deuses se move para cancelar alguém ou alguma marca, acontece algum tipo de autorização para que todos os outros também sejam agressivos.

Em se tratando de pessoas que vivem da internet, isso pode, inclusive, representar o fim de patrocínios, e o efeito real pode ser devastador. Ressalto os efeitos materiais de acabar ou ferir de morte a carreira de alguém, porque imagino que os efeitos emocionais disso estão claros. O linchamento moral – feito por quem também gosta muito de usar palavras soltas, como sororidade, empatia etc. – não tem piedade e causa danos emocionais gravíssimos.

Voltando aos casos reais, recentemente, uma grande percussora do mantra da vez foi pega em contradição. Mas esquece que o mal de expor a vida inteira é que as provas ficam expostas. A atriz foi pega em Fernando de Noronha, bem longe de sua #FiqueEmCasa, sem máscara e, inicialmente, optou por rebater a todos, reforçando que fez meses a fio de isolamento e que aquilo foi só um minuto sem máscara.

A mesma atriz anteriormente havia bradado sobre a irresponsabilidade daqueles que levam o vírus para a ilha de Noronha. Mas isso nem é o pior. Na ânsia de não ser cancelada, de não perder a cabeça na guilhotina que há anos vinha ajudando a azeitar, mentiu. A atriz apelou para o seu sofrimento imenso, de quem passou a virada do ano sofrendo, em uma chamada de vídeo, pelo seu pai com COVID. As fotos provaram o contrário. Estava em uma ilha alugada, com as amigas, bebendo e rindo na virada. Acho bem difícil acreditar que nessa ilha as moças faziam tudo. Tendo a crer que havia empregados para servi-las.

Quando a coisa escalou, a paladina da justiça, da moral e do bem chamou de “show de impulsividade”. Imaginem só se fosse outra pessoa menos conhecida ou algum dos párias eleitos pelo panteão para ser bode expiatório. Impulsividade é só a boa e velha mentira mesmo. A guilhotina cortou a cabeça de quem a construiu. Os deuses percebem então que são humanos, que erram, e toda aquela adoração não demora a virar uma turba revoltada. E a
justificativa é um argumento que eles próprios alimentaram. #MaisAmorPorFavor não resolve qualquer coisa.

Simone Mayara é Analista Política no Instituto Livre Mercado. Pode ser encontrada no Instagram.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.