Bemdito

A rua só para quem precisa

Em tempos de pandemia, direito à cidade é permanecer em casa Rodrigo Iacovinirodrigo@polis.org.br Do 15° andar, observo e escuto a cidade. No início da pandemia, foi a ausência do zunido cotidiano de carros, ônibus e trabalhadores que me proporcionou a dimensão real do drama que vivíamos. Um ano depois, estamos em uma situação ainda pior,… Continuar lendo A rua só para quem precisa
POR Rodrigo Iacovini
Ismael Braz

Em tempos de pandemia, direito à cidade é permanecer em casa

Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br

Do 15° andar, observo e escuto a cidade. No início da pandemia, foi a ausência do zunido cotidiano de carros, ônibus e trabalhadores que me proporcionou a dimensão real do drama que vivíamos. Um ano depois, estamos em uma situação ainda pior, com mais de 2 mil mortes diárias, colapso no sistema de saúde, a economia definhando a olhos nus e o sistema político em decrepitude avançada. O que mais me assusta, no entanto, é o barulho que vem da rua. Esse som agora perturba meu sono. Não por motivos acústicos, mas por indicar que não estamos parando.

Na reflexão audiovisual lançada na última semana pelo Bemdito, Lockdown, Fortaleza e suas ruas aparecem praticamente vazias, enquanto a voz de governantes ecoam. Infelizmente, o que ouço da minha janela é justamente o contrário.

O comando tardio e débil – quase inaudito – dos governantes faz com que as ruas permaneçam movimentadas. A noção de serviços essenciais tem sido elástica e busca proteger setores que estão longe de necessitarem realmente de amparo, como igrejas e a construção civil. Se há alguns poucos empreendimentos cuja paralisação significaria um prejuízo econômico irreparável, em sua maioria poderiam certamente ter seu início ou finalização adiados. Há cultos que poderiam ser realizados à distância, dado o dogma da ubiquidade. Afinal, quanto vale a vida de um fiel ou do trabalhador?

Nesse contexto, exercemos nosso direito à cidade ao ficar em casa. Como um direito tecido coletivamente através de interações sociais, econômicas, afetivas e políticas cotidianas, o direito à cidade nos desafia a adotar o bem comum como norte de nossas condutas individuais. Por isso, trata-se hoje de não estar nas ruas, a menos que seja absolutamente necessário.

Ao contrário do enfrentamento à violência urbana, as ruas vazias proporcionam neste momento um ambiente sanitariamente seguro a profissionais que não podem se furtar a sair de casa, como aqueles ligados à saúde, à alimentação, etc. Muitos deles se veem ainda obrigados a usar transportes coletivos superlotados, fruto de decisões políticas que historicamente favoreceram a diminuição da frota de veículos em circulação – atualmente sob o pretexto de preservar seus profissionais – com fortes apelos, em realidade, à manutenção do “equilíbrio econômico dos contratos” das prestadoras do serviço.

Obviamente, não estar nas ruas impacta profundamente a economia e o sustento de milhões de famílias. Não se trata de fazer um apelo ingênuo, ou de se dirigir apenas à classe média e aos profissionais liberais. Estar em isolamento deve obrigatoriamente ser acompanhado de medidas robustas de proteção social, como um auxílio emergencial que efetivamente possibilite a sobrevivência de famílias de baixa renda – e não os R$ 250 irrisórios que o governo federal tenta atualmente emplacar. Devemos cobrar ainda o auxílio a pequenos e médios negócios, que empregam milhões de brasileiros.

Enquanto não aceleramos a vacinação, são essas medidas que garantem a vida e que possibilitam que as ruas estejam mesmo vazias e silenciosas. Infelizmente, enquanto finalizava este artigo em pleno domingo, manifestantes se aglomeravam em Copacabana (RJ) e faziam uma carreata em Fortaleza contra o lockdown. A vida está em disputa. A rua e o silêncio também.

Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.