Bemdito

Baixo ventre

Quantas vezes somos capazes de nos apaixonar pela mesma pessoa e viver um sentimento tão intenso que nos faça perder as palavras?
POR Raisa Christina
François Boucher - Pastor e Pastora

Quantas vezes somos capazes de nos apaixonar pela mesma pessoa e viver um sentimento tão intenso que nos faça perder as palavras?

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Hilda Hilst

Estávamos almoçando um tanto apressadas a refeição pedida no aplicativo, entre o link de uma reunião e o de outra, quando minha filha de repente perguntou: “mãe, quantas vezes você já se apaixonou?”.

Não respondi de imediato. Ria desconcertada enquanto pensava em dizer “muitas”, mas ponderei: “filha, paixão de verdade mesmo, senti só algumas vezes”.

Ela lançou por cima de meu ombro um olhar longo, apertando os olhos como se esmiuçasse a vista e em seguida a conversa tomou outro rumo. Não mencionamos mais a paixão, contudo o assunto seguiu comigo ao longo do dia, abrindo-me sorrisos sem aviso prévio no rosto enquadrado em plena videoconferência, depois na lavagem da louça e mais tarde na dança da vassoura pelo chão da sala. A paixão desorganiza, inclusive o encadeamento de palavras e a teia de memórias.

Apaixonei-me em diferentes momentos pelo mesmo homem, que claramente não tem sido o mesmo desde então. Beijei Marcos pela primeira vez num pré-Carnaval a dois quarteirões da Praça da Gentilândia, em Fortaleza. Nunca fui de Carnaval, mas era fevereiro tempos atrás e as ruas estavam úmidas com as chuvas de verão e o calor dos amontoados de gente em festa.

Eu o havia visto tocar e cantar no auditório de um centro cultural e não quis perder a chance de me apresentar a ele e tentar prolongar sua presença pela cidade. À época, não me veio outra ideia a não ser o convite óbvio para conhecer o tal pré-Carnaval. Em algumas horas, lá estávamos os dois no meio da confusão, eu a abrir caminho na multidão informe, ele a segurar minha mão, num gesto que experimentaríamos repetidas vezes como se houvesse sido sempre assim.

No dia seguinte, nos despedimos: ele morava em outro estado e precisava dar sequência à série de pequenos shows pelo Nordeste, na companhia de dois queridos amigos. Neste mesmo ano, conheci o pai de minha filha, com quem casei e partilhei a vida. Ainda hoje o considero um grande companheiro, um grande amor que me ouve, apoia e inspira.

Após a separação, tive outros relacionamentos nos quais também fui feliz de maneiras diversas. Revi Marcos pela segunda vez anos depois, no litoral de Icapuí. De barba crescida e sardas multiplicadas, ele se queixou de dores na lombar e no ombro. Apesar dos murmúrios do corpo ressentido, ele estava ainda mais bonito. Percebi que me apaixonei novamente quando ele flexionou os braços e apoiou o dorso das mãos na cintura, encarando o mar. A onda do antigo desejo se renovou e fez tremer toda a extensão das pernas.

Houve um terceiro encontro, um quarto prolongado, um quinto que se fez temporada até que nos vimos morando juntos, dividindo cama, contas e listas de supermercado. No intervalo desses encontros, deram-se tormentas, rotas de extravio, fogos cruzados, pois já se sabe que não há linearidade no fluxo do tempo nem dos desejos.

Como explicar à minha filha que certas paixões parecem avançar em ciclos, compondo espirais? Elas irrigam os tecidos e coram os corpos. Trata-se da dinâmica do sangue que é a mesma da vida.

Em “cerimónias”, ensaio precioso sobre o líquido vermelho, Maria Filomena Molder diz: “A lividez pertence aos mortos, pertence aos espectros e pertence às grandes emoções. As grandes emoções (e as grandes doenças) fazem perturbar a nossa imagem do corpo, enquanto imagem que tem cor.”

Dito de outro modo, é como se o coração provasse uma espécie de hemorragia que comove o corpo por inteiro e desloca o centro do peito para o baixo ventre, encarnado, mais próximo da terra e estranhamente do céu, quase riscando o limite da morte. Foram pensamentos, lembranças e recordações assim que não soube dizer à minha filha e nem achei que deveria, pelo menos por agora.

Lembrei-me da aventura do poeta que perde a língua no conto de Ìtalo Calvino. O personagem não consegue encontrar palavras no instante sublime em que veleja pela costa italiana, ao lado da mulher por quem está perdidamente apaixonado. Se até poetas em estado de vermelhidão e arroubamento perdem o manejo com as palavras, deixo para os anos seguintes, que eles falem com delicadeza e mistério a paixão, no idioma do corpo de minha filha. 

Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.