Bemdito

A criança e a expansão do real

O que as fabulações infantis capazes de expandir o real dizem sobre a escrita e outros processos criativos
POR Raisa Christina

O que as fabulações infantis, capazes de expandir o real, dizem sobre a escrita e outros processos criativos

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

Entrava no quarto e dava voltas à cama,
entre os cobertores soltava as tranças.
Quanto tempo depois adormeceria?

Maria Filomena Molder

Os pés se separam alinhados, criando uma pequena abertura entre as pernas. O braço esquerdo segura o arco, estendendo-se lateralmente na altura do ombro, enquanto o direito eleva um pouco o cotovelo, puxando a corda. Nessa, encaixa-se a traseira da flecha, apoiada entre o indicador e o dedo médio da mão direita, que se encontra tesa, logo abaixo do queixo paralelo ao ombro. A ponta da flecha repousa sobre a lateral da mão esquerda, tão leve quanto firme.

A menina está ereta e encara o alvo, a poucos metros diante dela. A sala de jantar dá lugar ao campo de batalha nos pés da muralha que rodeia uma antiga cidade. Ela fecha um olho e tenta focar com o outro. Antes do lançamento, supõe a curva no trajeto da flecha e as eventuais tremulações dos braços. O gesto deve ser rápido e preciso. Não se pode cansar a musculatura com demasiados cálculos e ponderações. Puxa a corda para trás da orelha, o olho se projeta e desliza pela extensão da flecha e, num átimo, ela e a flecha são um só corpo.

Há sempre um alvo na escrita e nos processos criativos em geral, um endereçamento, um ponto para o qual se mira e no qual se deseja penetrar, ainda que esse alvo porventura faça a arqueira dobrar-se e apontar para si mesma. No mês passado, instalei-me provisoriamente num apartamento, na companhia de minha filha. Assim que chegamos, ela logo quis saber sobre os vizinhos, de quem captou sinais nas varandas – bandeirolas penduradas, uma silhueta feminina na penumbra, um gato castanho, outro com manchas pretas, a franja da rede vazia. Resolveu escrever uma carta para a vizinha de baixo e outra para o vizinho de cima. Contou-lhes que se chamava Catarina, que vinha da Cariba e gostava de desenhar, comer tapioca, andar de patinete.

Dobrou os bilhetinhos, movida por um carinho sem explicação pelos moradores desconhecidos do prédio. Subiu e desceu escadas sorrateiramente, como uma mini espiã, para lançar suas mensagens debaixo da porta deles. Voltou ofegante, com a satisfação da tarefa cumprida. Horas depois, brotaram dois envelopes coloridos em frente à porta da sala. A partir de então, seguiu-se uma correspondência curiosa, por meio da qual felinos domésticos são apresentados, palavras em tupi são listadas, instruções para origamis e mapas, desenhados.

Será mesmo que a escrita é disparada apenas por alguém para quem se escreve? Ao observar Catarina, constato que há também uma vontade de dispor as ideias em ações e textos gráficos. Talvez certos pensamentos só ocorram em diagrama, quando espalhados em palavras, traços ou figuras que se atiram sobre o papel. Para que isso aconteça, muitas vezes se vislumbra um leitor cujo rosto pode estar coberto de névoa ou exposto em fina claridade. Ao leitor, dirige-se num tom parecido com aquele que se entoa na oração solitária. Tratando-se da carta, não é necessário tanto volume. Pelo contrário, o tom é baixinho, de quase confidência.

Junto aos pensamentos jogados no papel, Catarina foi desenhando o relevo de uma terra distante, comprida como o Chile, misteriosamente situada entre a França e o Japão, conhecida como Cariba. No exato momento em que lhe lembro a hora do banho ou da tarefa de casa, ela explica que posso até estar bem intencionada, porém, na Cariba as tradições são todas diferentes daqui e a própria criança é quem decide sozinha quando ir ao banheiro ou sentar-se à mesa. A escrita, o desenho e a dança se confundem no ato de narrar, na composição de substâncias e matérias do imaginário.

A criança vive no incessante movimento de sair de si para entrar em contato com o outro ou consigo mesma numa perspectiva diversa, a desenvolver táticas de fabulação que expandem o real. No texto O que as crianças dizem, Deleuze (2006) salienta: “O próprio da libido é impregnar a história e a geografia, organizar formações de mundos e constelações de universos, derivar os continentes, povoá-los com raças, tribos e nações. Qual ser amado não envolve paisagens, continentes e populações mais ou menos conhecidos, mais ou menos imaginários?”

A libido de Catarina tem me inspirado a percorrer mapas estranhos na Cariba, por onde às vezes topo com “lacros”, bichos pesados que parecem elefantes, e “estaus”, espécies de aves que se assemelham às galinhas. Perceber cada um dos modos de presença da criança me faz ensaiar uma valsa na cozinha, uma língua de miados estridentes, uma fuga para debaixo do cobertor e uma cerimônia romântica em plena quarta-feira ao lado de meu companheiro, quando a própria Catarina celebra nosso casamento com anéis de papel e pizza.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.