Bemdito

Onde estão as vacinas da África?

O apagão de doses no continente africano é manifesto a céu aberto pela quebra de patentes das vacinas contra a Covid-19
POR Wanderley Neves
Foto: MINUSCA

O apagão de doses no continente africano é manifesto a céu aberto pela quebra de patentes das vacinas contra a Covid-19

Wanderley Neves
nevesn@gmail.com

Os países africanos abrigam quase 17% da população global, mas apenas 1,81% das doses de vacina contra a Covid-19 administradas no mundo até quarta-feira (6) foram aplicadas no continente. Está atrás apenas da Oceania, que não tem pressa por estar praticamente livre de casos há meses.

Onde estão, portanto, as vacinas da África? Não só da África, mas onde estão as vacinas dos países pobres? Provavelmente, sendo injetadas neste minuto nos braços de jovens do Alasca ou de Tel Aviv. Enquanto Israel já aplicou duas doses em 55% da sua população, nos países de renda baixa (classificação do Banco Mundial), em torno de 1% recebeu a primeira dose.

Aquilo que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, condenou veementemente ainda como hipótese no ano passado, enfim aconteceu: os países ricos, e até mesmo os de renda média-alta, irão vacinar seus jovens antes que os países pobres consigam vacinar ao menos seus profissionais de saúde.

O continente africano é o mais atingido pela falta de recursos para enfrentamento da pandemia. Por incapacidade ou negacionismo dos governos, são feitos poucos exames para diagnosticar a doença, então faltam dados básicos. Teremos que esperar pelos grandes estudos epidemiológicos que certamente serão realizados nos próximos anos para estimar a real dimensão da Covid sobre essas populações.

As campanhas de imunização dos países de renda baixa dependem quase integralmente das vacinas do consórcio Covax, criado pela OMS para garantir um mínimo de equidade na distribuição de vacinas para os grupos prioritários pelo mundo. A meta — já cortada pela metade — é entregar 1 bilhão de doses até o fim do ano. Mas até ontem, 8 de abril, haviam sido distribuídas somente 38 milhões de doses para 102 países.

Para entender essa proporção, isso é mais ou menos o que só a farmacêutica AstraZeneca tem de estoque parado nos Estados Unidos aguardando autorização de uso pelas autoridades sanitárias. E o governo Biden passou semanas sentado sobre as vacinas, negando-se a liberar as doses para países em que o imunizante já está sendo utilizado. Anunciou até agora pequenas remessas somente a México e Canadá.

Enquanto isso, no fim de março, a OMS emitiu comunicado aos países participantes do Covax de que a programação de entregas pela AstraZeneca sofreria atrasos no mês de abril. O motivo? O Instituto Serum da Índia foi obrigado pelo governo indiano a direcionar mais doses para uso interno devido à piora da epidemia no país.

Somando à escassez, alertaram ainda para a possibilidade de as vacinas chegarem aos seus destinos com prazos de validades muito curtos, de apenas 3 meses. Ou seja, países com sistemas de saúde frágeis precisam estar preparados para distribuir e aplicar rapidamente as doses recebidas e ainda armazenar adequadamente a quantidade necessária para a segunda dose.

O intervalo maior entre as doses (de 2 a 3 meses) recomendado pela OMS para a vacina da AstraZeneca poderia fazer com que mais pessoas fossem inicialmente imunizadas, deixando para que a segunda dose fosse aplicada com entregas futuras. Mas nem a OMS nem os fabricantes podem hoje garantir que haverá vacinas suficientes caso os países optem por esse esquema.

Vendida a preço de custo e sem exigências mirabolantes de armazenamento, a vacina da AstraZeneca desenvolvida na Universidade Oxford foi escolhida para ser a base da campanha de vacinação em várias regiões do mundo, como Brasil, Reino Unido e União Europeia. No total, foram contratadas 2 bilhões de doses. Mas somente o Reino Unido, sede da empresa, conseguiu até agora garantir um fornecimento estável.

Mesmo países com acordos para produção local, como o Brasil, não estão conseguindo manter os cronogramas. Por aqui, a produção da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) começou somente em março, e a previsão de entregas vai diminuindo a cada nova atualização. Não fossem a produção do Instituto Butantan e as importações da Índia, teríamos aplicado até agora 4,1 milhões, e não 25 milhões de doses; 6 vezes menos.

Coroando o descalabro, foi divulgado mês passado estudo realizado na África do Sul para avaliar a eficácia da vacina da AstraZeneca contra a variante sul-africana do vírus. Resultado: o imunizante não consegue prevenir infecções causadas por essa linhagem. Com a possibilidade dessa variante predominar no continente africano, e de outras linhagens pelo mundo convergirem na mesma direção (como se vê no Brasil), podemos estar produzindo milhões de vacinas inúteis.

É muito simples: a pandemia só será controlada quando todos os países tiverem suas populações imunizadas com boas vacinas. De que adianta que os Estados Unidos vacinem todos os seus adultos até o fim do semestre se uma variante surgida em Belo Horizonte ou Lagos pode botar tudo a perder?

Da boca pra fora, todos são a favor de maior equidade na distribuição das vacinas. Premiês e presidentes de 23 países, entre eles Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Espanha, Chile, Tailândia e Portugal assinaram com o diretor-geral da OMS manifesto por um tratado internacional específico para prevenção e combate a pandemias. O plano de ação da Nova Rota da Seda chinesa tem um parágrafo sobre investimentos na cooperação na saúde.

Mas na hora de abrir mão de doses para que elas cheguem aos países mais pobres, esses mesmos países implementam, ao contrário, controles de exportação. Vacina pouca, meu braço primeiro.

Na hora de decretar uma quebra temporária das patentes das vacinas (mais especificamente, o licenciamento compulsório), a maioria desses mesmos países votou contra. E nunca é demais lembrar que, nesse caso também, o Brasil está do lado errado da História.

Obrigar os laboratórios a compartilhar as patentes das vacinas permitiria que a produção de todos os insumos fosse descentralizada sem revogar a propriedade intelectual dos laboratórios. É claro que não é uma solução imediata, mas já poderíamos estar em plena produção caso isso tivesse sido acordado ainda no ano passado.

Antes que subam os gritos de que isso causaria desincentivo à inovação e ao investimento privado, lembro que as vacinas foram largamente financiadas por bilhões de dólares de dinheiro público. Que essas pessoas estejam mais preocupadas com os lucros dos laboratórios do que com acesso universal a vacinas é atestado da imoralidade do neoliberalismo.

Wanderley Neves é jornalista. Está no Twitter.

Wanderley Neves

Jornalista especializado em economia e política internacional.