Bemdito

Quem tem medo do Zé Gotinha?

Os perigos da lamúria coletiva sobre os efeitos da vacina soam como pequenos reforços desestimulantes e são dispensáveis
POR Desirée Cavalcante
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nos últimos dias, muita gente querida encheu os meus olhos de alegria com fotos e mensagens do tão aguardado momento da vacinação. Após meses de tantos reveses, a primeira dose e o avançar da fila têm chegado como um ar de esperança. Ao mesmo tempo, o bom suspiro tem sido atravessado por discussões sobre medos, predileções e conspirações.

“Qual vacina você recebeu?”. Essa pergunta é imediata. A depender da resposta,  você será rapidamente felicitado ou terá de ouvir um ar de desânimo sobre efeitos colaterais e dores. Junto a isso, um número surpreendente de pessoas – para quem ainda não perdeu a capacidade de se surpreender – tem recusado receber imunizantes que não sejam de um laboratório específico. São os ironicamente chamados sommeliers de vacina, a nova categoria pandêmica.

As discussões e os relatos sobre os sintomas possíveis após a primeira dose não me trouxeram conhecimentos especializados de infectologia. Ao contrário, continuo sem qualquer habilitação para falar o que há de certo ou errado acerca de qualquer imunizante. A mim, na verdade, resta esperar e torcer para que eles  funcionem, não importando de qual laboratório sejam. 

Particularmente, não tenho medo de agulhas, vacinas, ambulatórios ou hospitais. O Zé Gotinha cumpriu bem o seu papel na minha infância, distribuindo abraços e bombons – os quais, aliás, eu adoraria receber novamente. 

O ânimo da vacina, no entanto, foi mergulhado em uma atmosfera de medo e incerteza. Algumas pessoas desejam sorte e narram dores que cruzam noites.  Insistem em mencionar tudo o que não será possível fazer durante os dias seguintes. Conseguem abalar o mais confiante dos seres. 

Era uma obviedade. E ainda é. Ser vacinada, em meio a uma pandemia, em que centenas de milhares de pessoas já morreram e outras tantas passaram por dias de medo e angústia e guardam sequelas, é algo que vale qualquer mal-estar passageiro. Entretanto, não tem sido fácil escapar da avalanche de desinformação e negativismo e, mais do que isso, tem sido difícil não se deixar afetar.

Ao mesmo tempo em que se tenta manter o senso crítico, é preciso não recair em conspirações. Mais do que nunca, a boa informação é necessária e precisa ser massivamente compartilhada. 

É assustador perceber como a repetição de partículas de terror pode abalar algo em que se acredita tão fortemente. Perceber que existem fissuras, pequenas ou grandes, em tetos antinegacionistas, e que se tem de relembrar o que antes era evidente, faz ressoar alarmes. Pessoas que nunca demonstraram negar a gravidade da pandemia, nos últimos dias, passaram a confessar receios sobre a imunização, a politização do tema e os possíveis efeitos colaterais.

É fato que há pessoas que experimentam reações vacinais, como ocorre com outros vários tipos de imunizantes. Repito: este não é um texto para comprovar que as vacinas são boas. Há gente muito habilitada fazendo isso. Esse é um texto para ratificar a dimensão social daquilo que propagamos, a influência que exercemos sobre pessoas próximas e que, cumulativamente, ganham proporções relevantes. 

Informar é diferente de entrar em uma espiral de lamúria coletiva. Em um terreno tão fértil a terraplanismos, pequenos reforços que soem como desestímulos para algo que é urgente e essencial são dispensáveis.

Nota: A quem interessar possa, recebi AstraZeneca. Não tive nenhum sintoma forte, apenas um peso leve ao levantar o braço, que durou um dia. Não ganhei bombom ou abraço. Não vi o Zé Gotinha. Mas estou com os dois braços e as duas pernas disponíveis para a segunda dose. 

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.