Bemdito

#NuncaDeuCerto ou deu certo pra quem?

Da gíria da favela ao apelo publicitário: a novela envolvendo a expressão "vai dá certo" explicada em três atos
POR Glória Diógenes
Foto: @hastag.eu

Em coautoria com Lara Denise Silva*


Após prolongado período de isolamento, ao atravessar a cidade, encontramos uma enchente de #vaidarcerto estampado em tudo que é canto. A intervenção ganhou destaque publicitário em sedes de empresas, lojas, hospitais, e por aí afora. Curiosamente, os números de mortes por Covid se multiplicavam entre ondas, na mesma proporção da intensa solicitação visual provocada pela hashtag. A Fortaleza da frase insinua a projeção de um futuro melhor, um “aguente firme”.   

Quem vê, lê a mensagem e segue indiferente às suas mutações no rosto da cidade.  Imagens do #vaidarcerto já ocuparam paredes com outra figuração, outra gramática visual. Vale lembrar que uma imagem é bem mais do que se vê, do que está escrito, do que pretende dizer. O ato da feitura, o processo de criação da hashtag e o movimento dos corpos na ação de tatuar a pele da cidade trazem histórias que ficam ali, latejando em silêncio. A imagem é concreto, energia, estética e afeto. Jatos invisíveis enredam a memória da emblemática frase que reveste frágeis fortificações.

Primeiro ato.  

Por volta de 2014, Jemison Sousa teve a ideia de criar o estêncil #vaidácerto. Dispensando o infinitivo do verbo, preservando a “gíria da favela”, o autor enfatiza que foi “escrito assim de propósito”. Havia, segundo ele, a motivação de passar uma mensagem positiva para quem enfrenta o trânsito caótico das ruas.

Em 2015, já eram mais de 700 frases, a maior parte em Fortaleza, ocupando pontos estratégicos de núcleos comerciais e residenciais de alto poder aquisitivo. Centro vital dos estabelecidos. Foi quando o #vaidácerto começou a “dar errado”. Fez deslocar o olhar, incomodar, irritar, mobilizar ações e contestações. Operando exatamente o que move as artes de rua: ativar outros sentidos, inventar linguagens, produzir estranhamentos, incitar formas de ler e viver cidade. 

O autor da frase conta ter passado a receber inúmeras reclamações. O erro ortográfico do verbo dar causou incontido incômodo. O verbo distorcido cruzou as ruas. Tal qual lembra Flusser, os inventores do alfabeto viram nos criadores de imagem inimigos da escrita. 

O estêncil da rebeldia, o ruído dos outsiders, ocupou o palco da “zona nobre”. O #vaidácerto repetiu-se, repetiu-se, até se fixar nas paredes imateriais da cidade, imaginações que povoam assuntos e histórias. No início, quase não se via embora, estivesse lá com todas as letras e um “r” a faltar. Foi quando começou a incomodar os arautos da língua. 

Segundo ato.

Um publicitário amigo de escola de Jemison, Felipe Yarzon, propõe que o autor promova a brigada de correção dos verbos. Iniciaram os dois o processo de acrescentar o tal “r” e suprimir o acento agudo. Ato efetuado, primeiramente, nas avenidas situadas próximas à Beira-Mar (cartão postal de Fortaleza).

O desconforto causado pela hashtag mostrou, no alvoroço motivado por um desvio de conjugação, que as paredes, os muros, são ao mesmo tempo cimento e emoção. Atravessam as ruas, assentam-se entre os movimentos dos corpos, produzem ecos mesmo entre rasuras e apagamentos. Propagam-se na Internet. Transformam o efêmero, o transitório, em um eterno que corre entre redes sociais digitais. 

Terceiro ato.

O mergulho no Google traz variados links, imagens, notícias e informações acerca da inundação da emblemática intervenção. Nas palavras de Jamison, afora os insistentes reclames, a frase “deu esperança” às pessoas que passavam nas ruas. Porém, como se diz nas revistas de fofoca, quando alguém se recupera de uma bad, a hashtag surge repaginada.

A grafia aparece impecável, com o verbo no seu infinitivo. Recebe a intervenção de designers e se avoluma em ampliadas campanhas publicitárias. Deparo-me então com a matéria de um renomado jornal local, datada de abril deste ano, cujo título é: você conhece a história por trás do #vaidarcerto?  

Em meio à pandemia da Covid-19, uma rede hospitalar, na voz do seu presidente, decide usar a hashtag #vaidarcerto associada à chamada: conheça a história do grito de esperança. A matéria indica que tudo começou com um líder, o do hospital que, no enfrentamento diário da pandemia, enviava vídeos sobre temas da rede de saúde, atualizações de atendimento, dividindo espaço com o vai dar certo. Enfatiza o jornal que foi assim que o #vaidarcerto se tornou âncora e alento para milhares de pessoas… Como se mudo fosse o comentário de um leitor que alerta “essa frase vai dá certo é antiga em Fortaleza”.

#NãoPossoVoltarAoNormal

Como esquecer aquilo que um dia disse um fera do graffiti, a rua sempre cobra? Coincidentemente, passando os olhos na página do Instagram do hashtag.eu, nos deparamos com uma intervenção publicada pela primeira vez em 25 de abril de 2020. No ápice da denominada primeira onda da pandemia, o #NuncaDeuCerto” alcançou quase 500 likes. 

No início do mesmo mês, outra intervenção, #EuNãoAguentoMais ganhou, também, um dos maiores números de “curtidas” (563) do perfil. Dias depois, alguém riscou com tinta spray um “nem eu” logo abaixo da frase desabafo. Estamos exaustos de suportar.

Em 2014, quando Jamison dizia #vaidácerto, o contexto era outro. A esperança não era abstração. O Brasil ainda se movia dentro de uma certa ordem democrática. O #vaidarcerto da publicidade, o estímulo a um retorno do consumo, a aceleração das linhas de produção industrial, a expectativa de volta da “normalidade” na vida das pessoas, tudo isso acontece diante da morte por Covid de mais de 500 mil brasileiros. Sim, #NãoPossoVoltarAoNormal, escrita no Poço da Draga, em outubro de 2020, supera todos os outros likes.     

“O povo é quem mais ordena”

Se liga no que a arte pinta nas ruas. Foi assim na Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974.  Antes mesmo do 25 de abril, milhares de cartazes e graffiti cobriam muros, paredes e calçadas, sinalizando a premente queda do ditador. No ritmo melancólico de Grândola, os muros entoavam entre paisagens sonoras: o povo é quem mais ordena.

Assim também foi o maio de 68 na França. A explosão poético-mural, mobilizada inicialmente por estudantes, misturava humor e utopia. Palavras de ordem riscaram as paredes de Paris: “É proibido proibir”, “Deus está morto”, “Sejam realistas, peçam o impossível”. 

Caminhamos entre ruas da cidade catando escritos, imagens, explorando sutis pistas que revelam camadas de histórias entre tintas. Como disse um artista de rua de Lisboa, por cima de um efêmero tem outro efêmero. Quais os rumores de conspirações? Onde se confabula o levante?

Apuramos a escuta do que andam combinando no breu das tocas.  A cidade revela e esconde, se rebela e domestica, acolhe e exclui.  Esperança de vida melhor? É agora, matéria viva do que existe. Entre furos, golpes, trapaças, malhas da corrupção, nas tramas das milícias, penetraremos. Porque todos os risos vão desafiar.  

De olhos bem abertos. Riscaremos infinitas vezes #vaidácerto #VazaBozo #ExisteAmorPorAqui. O que não tem governo nem nunca terá.

*Lara Denise Silva é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professora da Rede Estadual de Ensino e membro do Laboratório das Artes das Juventudes (Lajus). Está no Instagram.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).