Bemdito

Pra lá do meu quintal: o jogo de afeto entre irmãs

Da infância à vida adulta, as belezas da relação entre companheiras de uma vida toda
POR Paula Brandão
Foto: divulgação

“Vou fugir dessa casa!” – disse eu, num daqueles dias em que julgava injustas as interdições morais do meu pai. Chorava, cheia de raiva, e minha irmã me ouvia, atenta às minhas queixas, seu olhar afetuoso, concordando calada. Eu era afeita às transgressões, e ela, às sutilezas. Ouvia todas as minhas bravatas, nunca colocadas em prática, com paciência. 

Dormi, perdida em meus soluços. Por volta das 3 horas da madrugada, ela me acordou com uma mochila nas costas com o que considerava importante levar, dizendo: “Vamos! Agora conseguimos fugir!”.

Ninguém no mundo poderia ter dito isso! Só a minha cúmplice de vida, irmã mais nova! Essa é a prova definitiva de confiança plena: se jogar de cabeça em um plano fajuto que eu compus, em momento de braveza, e nem eu mesma acreditava na possibilidade de execução.

No filme A vida invisível, me deparei com a narrativa de outras duas irmãs, Eurídice e Guida, que alimentavam suas pequenas cumplicidades e se separaram por terem nascido numa família de natureza patriarcal e machista, que as condenou a um destino decaído.

A primeira é confidente dos primeiros amores da outra, até que se separam em definitivo e passam o resto da vida se procurando. Guida, vivendo as mais profundas misérias, tem o alento de escrever e compartilhar suas vivências, mediante o envio de cartas que parecem nunca chegar às mãos de Eurídice. Ao final, em seu desespero pela ausência de respostas, Guida escreve pela última vez e revela à irmã que, apesar de ter perdido a esperança em reencontrá-la, continuava escrevendo porque, só através dela, lembrava-se de si mesma.

Além do espaço da concórdia e solidariedade perante pais autoritários, há que se lembrar que a entrada de uma irmã (ou irmão) em uma vida é sempre uma intrusão, muitas vezes sentida como uma rivalidade. Nomeadas na psicanálise como ciúme pela disputa do amor da mãe e, mais tarde, do pai, acabam por precipitar as primeiras angústias de castração, revela Maria Rita Kehl, em Função Fraterna, adotando um ponto de vista freudiano.

Movida por tramas reais e ficcionais, as relações entre companheiras de vida, irmãs, é cercada por entremeios, solidariedades, afetos e, por vezes, os laços desatam. Nascemos nas mesmas casas, cuidamos uma da outra, brincamos juntas e descobrimos que temos o mesmo primeiro grande amor pelos nossos pais. E o afeto que nos une também nos separa, ao longo de nossas trajetórias. Nas disputas pra ser a mais amada, aquela que dá mais orgulho, ficamos, olho a olho, de lados opostos de um ringue. 

Quanto mais próxima da idade for a irmã (ou irmão), é provável que a intrusão precoce na sua vida promova impulsos imaginários de destruição, avalia Maria Rita Kehl. Ainda pequenas nos valemos da briga física, e na adolescência, por namorados, tudo em busca de nos estruturar, penso eu, maior que a outra. A autora diz que essa rivalidade, que permanece até a vida adulta, pode ter advindo de um meticuloso trabalho dos pais e educadores, nas suas táticas de governar, para incentivar entre os filhos a fantasia infantil de que só há lugar para um no amor parental. Eu pergunto: quem não quer ganhar esse espaço?

Irmãos unidos ou não

Nunca esqueci do arrebatamento que teve em mim a obra de Milton Hatoum, Dois irmãos. Eu li de uma sentada só, pois não consegui tirar os olhos da briga dos gêmeos Yaqub e Omar, primeiro, pelo amor de sua mãe, Zana, que sempre teve o seu escolhido, ao que o pai sentenciava: “Parece que o diabo torce para que uma mãe escolha um filho.” E para o resto de suas vidas, os irmãos foram movidos por ódio e por disputa pela moça da vila, por uma busca permanente de eliminação do outro, de denegação, de dinheiro, reconhecimento. Uma busca para se diferenciar, em definitivo, um do outro, nem que pra isso precisassem chegar à extinção. Muito diferentes, quem leu, certamente, escolheu um lado para se juntar.

A ideia de fraternidade associada à de igualdade, constituída com a Revolução Francesa, de 1789, descarta, contraditoriamente, o direito à diferença. Kehl avalia que os irmãos só são iguais enquanto se mantêm em seu estatuto de filhos. Cresci ouvindo que os irmãos precisavam ser unidos!

Contudo, sempre desconfiei dessa máxima, ao observar à minha volta irmãos que sequer se falavam, ou que escondem segredos uns dos outros, muito mais do que aqueles que compartilhavam um viver. Na minha convivência, ao mesmo tempo em que tive um leito de acolhimento e solidariedade sempre que precisei dos meus irmãos, também tivemos momentos de afastamento, de ausências, por causa de diferenças inconciliáveis.

Quando adultos, conversamos sobre nossas demandas mais complexas com aquelas pessoas que substituem, de certo modo, esse lugar que os irmãos ocupam na infância. Precisamos ser acolhidas por aquelas que entendem as nossas dores, hoje bem maiores que um machucado no joelho. Mas eu espero que, a despeito de todas essas dimensões de ser e ter uma irmã ou irmão, não tenhamos nos apartado, em definitivo, desses companheiros de uma vida toda. 

Torço para que você saiba que, a despeito de terem vivido na mesma casa por anos, podem ser pessoas diferentes. E que, ainda assim, terão uma excelente companhia para as fugas na madrugada, ou para olhar dentro dos olhos, um do outro, e agradecer por terem escapado vivos, desse último ano. 

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).