Bemdito

Vacinação dos profissionais da educação ou “onde estão seus documentos”?

Reflexões de um professor, na fila para vacina da Covid-19, ao precisar assinar termo de compromisso antes de receber o imunizante
POR Cláudio Sena
Foto: Steven Cornfield

Antes de dar a “canetada” – termo este geralmente atribuído ao exercício de um poder delegado ou autoproclamado, mas que, neste caso, fazia-me submeter a algo -, reli o tal documento: “(…) comprometendo-me a retornar às minhas atividades profissionais no segundo semestre do corrente ano, desde que devidamente autorizada pela Autoridade Sanitária Municipal”. Ah, esta minha cabeça pensante desenfreada… Não seria mais fácil sapecar a assinatura e garantir o meu bracinho furado e o meu organismo imunizado? 

Coloco-me a propor mentalmente uns aditivos ao contrato. Comprometo-me também a continuar os estudos, as pesquisas, os aprimoramentos e as atualizações, mesmo após a graduação, especialização, mestrado e doutorado. Comprometo-me a ouvir anseios, orientar alunos e alunas nos projetos profissionais e mesmo pessoais, durante sua jornada formativa e após.

Comprometo-me a vibrar com a superação e as  realizações individuais dos estudantes que cruzam o meu caminho, bem como preocupar-me com o aprendizado e com as desestabilidades financeiras, emocionais e familiares destes. Comprometo-me com tanto que talvez fosse melhor convocar um escriturário experiente e disposto para organizar as ideias. 

Continuo a ler o texto padronizado do documento e avanço nas letras pequenas, aqueles asteriscos perigosos que condicionam ainda mais as vantagens. Mania de publicitário, talvez. Tem lá a descrição de um crime de falsidade ideológica que, eventualmente, eu possa cometer: 

CP – Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940
Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular. (Vide Lei nº 7.209, de 1984).

Eu só queria 3 miligramas e a ativação da resposta imunológica do meu organismo contra a Covid, mas agora redobro a atenção para não correr o risco de acabar aprisionado em vez de imunizado. 

Com o preenchimento do documento, passo a firmar também uma parceria inesperada com o Ministério Público do Ceará (MPCE). No meio disso tudo, a dor da agulha entrando no braço é o de menos. A marca do fabricante da vacina, também. Como deixei para preencher o documento durante a fila de espera, adicione ao contexto a presença dos policiais, pastorando o movimento dos profissionais de educação a serem vacinados a qualquer instante. 

Documento preenchido, bem preenchidinho. Mãos higienizadas. Máscaras bem colocadas. Declarações e folhas nas mãos. Estou pronto e todo pimpão para enfrentar as 3 filas subsequentes: conferência de documentos, cadastro e vacina. “Qual braço vai ser?”. Minha amiga, pode decidir. Por mim, depois de tudo isso, até na testa. Isso não falei, sobretudo em respeito aos profissionais da saúde. Apenas pensei, como de costume. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.