Bemdito

Indignação midiática é só o que nos resta?

Juliana Paes e Luís Roberto foram os famosos mais recentes a encenar um velho gesto nacional
POR Rogério Christofoletti
Jorge Araujo/ Fotos Publicas

Toda semana tem um. Nesta, teve dois pelo menos. Toda hora tem gente famosa usando seus canais de comunicação para externar uma indignação feroz, capaz de mobilizar o jornalismo de mexericos, mas também reorganizar as tropas digitais. 

Dias atrás, o narrador Luís Roberto aproveitou a sua participação no programa Redação SporTV para reclamar da aceitação do Brasil em sediar a Copa América deste ano. Com quase meio milhão de mortos por Covid e a ameaça de uma terceira onda da doença, atrair delegações esportivas, jornalistas e inevitáveis torcedores tem tudo para ser uma péssima ideia sanitária. O jeitão simpático de Luís Roberto deu lugar a uma fala crítica, considerando uma “vergonha” ter um evento “fora de hora” como este, algo “inaceitável”, “um tapa na cara dos brasileiros”.

Na mesma semana, a atriz Juliana Paes publicou em suas redes um vídeo se queixando do tratamento dado à médica Nise Yamaguchi, convocada para depor na CPI da Covid. “Um show de horror e boçalidades! Certa ou errada, não importa!”. Na sequência, disparou contra a polarização política no país, dizendo não se representar nem pelo governo nem pela oposição. “Eu não admito ser colocada em nenhum desses dois polos”.

Nos dois episódios, as celebridades posicionaram-se de forma veemente; e é claro que as suas falas provocaram reações inflamadas de anônimos e famosos, apontando principalmente incoerência política, indignação seletiva, alienação e falta de consciência social.

O incêndio no parquinho não é novidade, né? Nem os indignados midiáticos. Recentemente, dá para se lembrar dos vídeos de Maria Flor, Xuxa, Casagrande e uma longa fila. Parece que esses nossos tempos sombrios despertaram uma revolta generalizada que tem nessas aparições famosas a sua forma mais vistosa e inflamatória. Na verdade, não, né mesmo? Reclamar está entre os comportamentos mais comuns entre os brasileiros, e esta postura – só reclamar! – também é tema frequente de outras reclamações.

Motivos não faltam. A pilha de cadáveres da pandemia só aumenta, o plano nacional de imunização não decola, tem general e ministro aprontando sem punição, a fome e a miséria aumentaram no país, e existem mais de 100 pedidos de impeachment dormindo embaixo do traseiro preguiçoso de Arthur Lira.

Nessas condições tão tóxicas, queixar-se é tão natural quanto respirar; indignar-se é um espasmo natural do corpo brasileiro que vai além de suas virtudes cívicas. As caixas de comentários em sites transbordam de chorume e ódio. As redes sociais se converteram em ambientes patológicos e, nas filas das lotéricas, todos se queixam de tudo, inclusive de só se queixar.

Há trinta anos, eu me aproximei pra valer do jornalismo, disparando cartas indignadas ao diário local. Meus alvos eram os políticos, as políticas públicas (a falta delas), os hábitos das pessoas e as leis. Chegaram a publicar algumas e aquela era a calha onde se podia escoar parte das queixas naquele tempo. Hoje é diferente. Não precisamos depender mais da boa vontade do editor da página de opinião…

Mas está difícil mesmo! Mais do que há trinta anos. As pessoas querem se apegar a um fio de esperança, mas ela é um fiapo roto, que não serve nem de linha pro horizonte.

Panelaços e protestos
Dos argentinos – historicamente mais indignados que nós! (aceite, dói menos) -, dos argentinos, importamos os panelaços. Pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por bateção de panela. Sempre me pareceu a revolta gourmet de quem tem panela para estragar na varanda do apartamento, confortáveis andares acima da casinha do porteiro, cujo filho se esfola para pagar o FIES.

Mas os panelaços têm sido cada vez mais frequentes e o Jornal Nacional deu nesta semana que eles foram os mais barulhentos já registrados contra Jair Bolsonaro. Em tempos pandêmicos, é uma alternativa segura e eficiente. Evita aglomeração, permite marcar posição, desopila o fígado, vira ritual cívico-social. Mas também pode ser a forma mais fácil para acomodar nossos rancores e domesticar nossos desejos. Expressamos o descontentamento em hora marcada, o que pode automatizar nossa revolta.

Veja! Não estou me queixando do seu panelaço! Você é livre para fazê-lo, independente da minha opinião. Só quero dizer que existem perigos embutidos nisso tudo: considerar que é a única forma de se indignar diante do mundo e das coisas. Outro risco é a alienação e a crença apressada de que se está lutando pelo país ao sair na varanda para berrar contra o vento. Outro risco é a indiferença que nos leva à indignação seletiva, cuja parente mais próxima é a revolta do sofá. Com nossos traseiros preguiçosos bem acomodados, martelamos nossos teclados furiosos e gritamos impropérios contra a TV. Meu pai fazia isso há trinta anos, coisa que repito hoje.

A solução é ir às ruas, certo? Também tem seus perigos, você sabe. Os protestos do 29M sofreram críticas nesse sentido e deram aos bolsonaristas o argumento de que eles também podem aglomerar tranquilamente a partir de então. Não tem saída fácil para esse beco escuro da história em que nos metemos…

Em Hong Kong, será o segundo ano consecutivo que a polícia vai impedir manifestações para se lembrar do massacre que lá aconteceu há 32 anos na Praça da Paz Celestial. Se você é jovem demais ou não se lembra, resgate o seu livro de história ou dê um Google.

A cena mais famosa é a de um homem solitário, desarmado, segurando uma sacola, diante de uma fila de tanques de guerra. Com tudo a perder, ele se coloca na frente dos blindados para impedir que eles avancem. Aquele homem, aquele corpo comum, é a síntese perfeita da indignação, da revolta, do basta. O gesto virou acontecimento jornalístico, imagem histórica, ícone midiático. O homem ordinário na frente dos tanques não é só o sujeito indignado, é a forma mais carnal e gritante de coragem.

Que ela – a coragem! – não nos falte toda semana quando ficarmos contrariados com alguma coisa ou alguém. Que a nossa imaginação também não nos abandone para criarmos formas de expressar o que pensamos e sentimos, para além da nossa revolta online. Que a indignação midiática não seja a única resposta para retomarmos as rédeas de nossos rumos.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).