Bemdito

Não atirem no próprio pé

Ao aceitar qualquer anúncio, mídia coloca em risco a credibilidade do seu negócio
POR Rogério Christofoletti

A roda do tempo gira, mas a gente não esquece. Foi no distante mês de fevereiro que os principais jornais brasileiros publicaram anúncios de uma associação médica recomendando substâncias comprovadamente ineficazes para o tratamento da Covid-19. A publicidade foi veiculada nos maiores mercados consumidores do país, ocupando espaços generosos em jornais como Folha de S.Paulo, O Globo e O POVO.

Apesar de render centenas de milhares de reais às empresas, este não foi um bom negócio, pois causou indignação em assinantes e leitores mais atentos. Como um jornal que alardeia trazer notícias verdadeiras pode também publicar conteúdos tão desinformantes? A contradição pode equivaler à trágica história da pessoa que busca a cura num hospital e volta de lá infectada por doenças mais mortais. 

Se você achou ruim o jornal da sua cidade estampar publicidade de cloroquina, calma. Vai piorar. Em julho, depois de requerimento aprovado pela CPI da Covid-19, veio à tona que quem pagou pelos anúncios não foram os Médicos pela Vida, mas a Vitamedic, grande produtora de ivermectina. Isso mesmo. Uma empresa com claros interesses em fazer crescer a venda desse remédio arcou com uma campanha que foi “assinada” com a autoridade médica.

Só soubemos disso há menos de dois meses, mas os jornais já sabiam desde fevereiro, quando receberam dinheiro da empresa. Note como isso é grave: um veículo de comunicação que afirma combater a desinformação publica em suas páginas um conteúdo que, claramente, induz ao erro pessoas desesperadas. O conteúdo foi pago por uma empresa interessada e o jornal fez cara de paisagem, como se não houvesse nenhum problema.

No mês passado, debati esse caso num evento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji. Argumentei que não foi um erro, e que existe muito cinismo na indústria quando engravatados afirmam que publicar o anúncio é defender a liberdade de expressão. Não tem nada a ver! O que os executivos estão defendendo é a liberdade econômica, a possibilidade de aceitar qualquer tipo de anúncio. O argumento não passa de malabarismo retórico com fins absolutamente comerciais.

O leitor poderá pensar: mas os jornais são empresas capitalistas, que visam ao lucro, o que eles poderiam fazer? Eu respondo: recusar. Os jornais não são obrigados a publicar nenhum conteúdo; eles escolhem o que vai preencher suas páginas, seja notícia ou publicidade. Jornais têm linhas editoriais e critérios de noticiabilidade. Isso os ajuda a hierarquizar as notícias, dando mais importância para umas e menos para outras. Isso os ajuda a descartar o que não consideram importante, seguro ou oportuno. Quando se trata de anúncios publicitários, pode acontecer o mesmo. Se uma campanha contradisser um valor importante da empresa, esta pode se recusar a veiculá-la.

Para ilustrar isso, sempre lembro do caso da revista Trip, que não aceita anunciantes da indústria tabagista. O dono da publicação que existe há 35 anos justifica: cigarro não tem nada a ver com o estilo de vida dos nossos leitores. Ponto final. Essa decisão tem suas consequências, é verdade. Não entra um centavo no caixa da revista vindo desse segmento econômico, o que pode complicar o fechamento das contas no fim do mês. Entretanto, a Trip não pode ser cobrada por ninguém de estar fazendo uma coisa com uma mão e desfazendo com a outra.

Esquema Igreja-Estado

Na década de 1920, o dono de uma importante revista dos Estados Unidos isolou a redação dos demais setores para garantir que os jornalistas não sofressem pressões externas e tivessem liberdade para produzir as notícias que precisavam ser contadas. A ideia era blindar o jornalismo de interesses comerciais que poderiam desviar o noticiário para atender às conveniências dos mais ricos. Esse esquema de separar o departamento editorial do comercial foi chamado de Igreja-Estado. A revista era a Time, e o dono se chamava Henry Luce. Deu certo? Em alguma medida, deu, pois o método influenciou outras tantas empresas do setor e se tornou um paradigma para o jornalismo.

Os maiores players do mercado dizem adotar este esquema, mas a coisa fica mais confusa nas empresas menores, quando a fronteira entre o departamento comercial e o editorial é porosa. Nessas situações, os interesses financeiros costumam interferir no noticiário, e jornalistas são dissuadidos a fazer certas coberturas ou mesmo convencidos a evitar alguns assuntos ou personagens.

Se de um lado o esquema Igreja-Estado não se universalizou, de outro, ele não tem funcionado muito bem onde é adotado. No debate da Abraji que participei, o ombudsman da Folha de S.Paulo, José Henrique Mariante, disse que a decisão de publicar o anúncio dos Médicos pela Vida foi da Secretaria de Redação, seção que é composta por jornalistas. O tema foi motivo de debates internos e o setor responsável se convenceu de que a medida era acertada. Pelo que o próprio Mariante deu a entender, a avaliação agora é diferente. Ter aceitado publicar trouxe danos à imagem do jornal. Não tenho informações da repercussão nos outros jornais, mas é de se imaginar que não tenha sido muito diferente.

Para os jornais, a campanha foi um tiro no pé. Para a Vitamedic, foi só investimento. A própria empresa informou aos senadores da CPI que as vendas de ivermectina explodiram nos últimos meses, e entre 2019 e 2020, foi registrado um aumento de 1230% nos negócios.

Como jornalista e pesquisador da área, penso que o esquema Igreja-Estado não é de todo ruim. Pelo contrário, é um importante marco na configuração do jornalismo profissional e um reforço a sua deontologia. É preciso entender que esse esquema tem um século de existência, e que precisa necessariamente ser aperfeiçoado. É um engano considerar que ele exista para proteger a redação e o departamento comercial.

Sejamos sinceros: o setor que vende anúncios nunca correu risco de ser prejudicado pela redação. O método Igreja-Estado foi criado para garantir autonomia editorial, pois a independência da redação, esta sim, corre perigo. Logo, é enganoso achar que os departamentos editorial e comercial tenham que dialogar, decidir juntos o que deve ser publicado.

A meu ver, esses setores não podem ter o mesmo poder de decisão sobre a matéria, e um deles deve se sobrepor: a redação. E eu tenho um argumento de ordem comercial para defender esta ideia: o core business de um meio jornalístico é produzir conteúdos informativos, e não anúncios publicitários. Então, a empresa precisa priorizar sua vocação primeira, defendendo esse core business de eventuais práticas que possam prejudicá-lo.

Por exemplo, se uma campanha colidir com um princípio editorial vital e se a sua publicação implicar em possível perda de credibilidade jornalística, deve-se recusar o negócio. Em termos concretos, isso significa renunciar a fontes de receita, o que gera preocupações fiscais, mas, por outro lado, assegura a médio e longo prazo uma coerência empresarial que é cada vez mais exigida. A roda do tempo gira, mas as pessoas não esquecem, e volta e meia, alguém se lembra de indústrias que colaboravam com o nazismo ou com a ditadura militar, para citar episódios mais extremos.

No caso do jornalismo, não é diferente. Dizer não a alguns anunciantes é sinalizar ao mercado que certos valores são inegociáveis. Os boletos chegam todos os dias, mas a fatura moral também é cobrada. É verdade que, num cenário de crise econômica, tais escolhas ficam sempre mais difíceis e às vezes até impossíveis para alguns. Mas sempre haverá quem possa e queira afirmar-se pela ética e pela integridade.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).