Bemdito

Dá pra aguentar até quando?

Violência, perseguição política e pandemia pressionam os jornalistas brasileiros
POR Rogério Christofoletti
Foto: Alan Santos/PR

Eu confesso que tentei escrever sobre algo mais leve desta vez – quem sabe a insinuante esperança que os Jogos Olímpicos nos trazem? -, mas não consegui. Se o BemDito é um espaço que renova e oxigena o noticiário poluído que encontramos por aí, ele é também uma arena de ideias, e as minhas estão absolutamente consumidas nas últimas semanas com uma preocupação: a saúde dos jornalistas brasileiros. 

Por motivos acadêmicos, tive contato com colegas de profissão que cobrem a Presidência da República e os testemunhos que colhi são aterradores diante de tanta sobrecarga de trabalho, tensão e medo diário, inclusive receio de sofrer consequências físicas por exercer a profissão.

Não é novidade que o governo Bolsonaro elegeu a imprensa como inimiga desde o seu início, mas não podemos naturalizar a perseguição inédita e a situação aviltante que vitima a muitos. Os ataques, as ofensas, humilhações e ameaças são constantes e públicos, e é preciso considerar que eles acontecem nos últimos dois anos num contexto de grande fragilização humana por causa da pandemia de Covid-19.

Fui convidado esta semana para falar sobre ética jornalística e, nas duas oportunidades que tive, não pude deixar de pensar em como as condições perigosas e insalubres dos jornalistas podem afetar a forma como eles se relacionam entre si, com as fontes e com seus públicos.

Para pensar a ética no jornalismo brasileiro contemporâneo, precisamos considerar três fatores que têm impactado muito na prática e nos valores que orientam a nossa profissão: a ultrapolarização política, os ecossistemas de desinformação e a pandemia da Covid-19.

Não dá pra avaliar o trabalho dos jornalistas na pandemia sem considerar a forma desastrosa que o governo Bolsonaro está enfrentando a doença. Não precisamos de uma CPI para saber que o governo federal tornou a crise sanitária mais aguda, mais duradoura e mais mortal.

A Comissão Parlamentar de Inquérito é importante para caracterizar crimes e implicar responsáveis, mas os rastros do desastre estão em toda a parte. A lista de omissões imperdoáveis e ações deletérias é interminável, e o governo não perdeu a chance de dar seus recados.

Considerados inimigos, os jornalistas não foram incluídos pelo Ministério da Saúde no rol dos grupos prioritários para vacinação, apesar de se exporem diariamente ao vírus. Pior: alguns ainda correm riscos em situações de aglomeração social ou proximidade demasiada com autoridades sem máscara! Não é exagerado dizer que Bolsonaro e seus apoiadores têm aumentado a insalubridade do exercício profissional com essas condições e as muitas agressões acumuladas nos últimos três anos.

É verdade que os impactos da pandemia sobre o jornalismo ainda não foram todos contabilizados porque a crise sanitária não acabou e porque os jornalistas e o jornalismo estão muito fragilizados no momento. Mas arrisco dizer que a pandemia impacta na ética do jornalismo porque acelera e torna mais agudos alguns fenômenos que já vinham corroendo e prejudicando a nossa profissão.

A epidemia forçou o isolamento social, provocando o esvaziamento das redações e até apressando a extinção de algumas delas. A pandemia tem gerado esgotamento físico, mental e emocional dos jornalistas. A sobrecarga de trabalho é uma consequência direta de equipes cada vez mais enxutas e adoentadas.

Alguns colegas se queixam da extrema dificuldade de liderar as suas equipes à distância e de motivar minimamente os colegas. Além disso, sindicatos e entidades de classe estão fragilizados por conta das reformas que estrangularam o movimento de organização dos trabalhadores.

O resultado mais imediato é a sensação de desamparo para os jornalistas, que não veem respaldo nas empresas para as quais trabalham e nem nos sindicatos onde poderiam buscar refúgio. Combinados, esses fatores aumentam a pressão sobre os jornalistas, precarizando a sua atividade e arrastando o jornalismo para um terreno eticamente pantanoso.

Essa área perigosa faz com que os jornalistas abandonem algumas práticas, abreviem certos procedimentos e reduzam mecanismos de controle ético, podendo ocasionar falhas éticas por medo, ansiedade, desorientação e exaustão laboral.

Assim, a pandemia contribui para o afrouxamento ético, que é alimentado por condições precárias de trabalho e pelos outros dois fatores que mencionei no início deste texto: a ultrapolarização política e os ecossistemas de desinformação.

Os pérfidos ecossistemas de desinformação têm ajudado a corroer a confiança no jornalismo porque nele se infiltra e o corrompe de maneira silenciosa. O jornalismo tenta reagir com soluções como agências de checagem e campanhas de combate às fake news, mas o problema da desinformação é muito mais complexo, até porque, paradoxalmente, muitas empresas jornalísticas se beneficiam também dos ecossistemas de desinformação.

Isso acontece porque organizações jornalísticas lucram direta ou indiretamente com conteúdos virais duvidosos, e porque – num contexto de crise financeira – tendem a ser mais lenientes com práticas que podem, inclusive, afetar seu core business, para usar uma expressão cara aos administradores.

O fato é que jornalistas e empreendimentos jornalísticos têm aceitado verbas, recursos e condições de grandes conglomerados de tecnologia que são grandes impulsionadoras de desinformação. Facebook e Google despejam migalhas para “impulsionar” startups de notícias e para capacitar profissionais, mas está cada vez mais nítido que esses incentivos fazem parte de uma engenhosa campanha de relações públicas global.

Pesquisas científicas e investigações jornalísticas mostram que esses gigantes tentaculares também alimentam as câmaras de eco, os vieses de confirmação e a ultrapolarização política. Já vimos isso nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Colômbia, na Índia e num certo país sul-americano com mais de 8 mil quilômetros de costa…

Os jornalistas brasileiros estão exaustos, se sentem pressionados e o medo faz parte do seu cardápio diário de sobrevivência. No contato que tive com alguns deles, foi nítido também perceber que essa equação devastadora produz efeitos inesperados: mais apego ao rigor na apuração e mais cuidado na edição dos conteúdos, e uma vontade imensa de continuar a fazer bem o seu trabalho.

Em condições tão precárias, é uma luz que ilumina caminhos. Me faz acreditar que o jornalismo brasileiro tem condições de enfrentar esses desafios e sair mais fortalecido e consciente de seu papel social. Não é pouca coisa. Respiremos.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).