Bemdito

Lula lá vai recalibrar o jornalismo em 2023?

Sem Jair Bolsonaro na presidência, redações precisam refazer estratégias de cobertura
POR Rogério Christofoletti
Ricardo Stuckert

Pouco tempo depois de Mario Sergio Conti lançar “Notícias do Planalto”, um catatau sobre o jornalismo brasileiro e o governo Collor, Paulo Henrique Amorim brincou: se fossem publicar um livro que retratasse imprensa no governo FHC, o título poderia ser “Laços de Ternura”.

Famoso pela língua afiada, Paulo Henrique criticava a complacência com que os jornalistas cobriam o Palácio do Planalto a partir do deslumbramento gerado pelo estancamento da sangria inflacionária e a eleição de um intelectual orgânico para a presidência da República. O sucesso do Plano Real foi um ponto de inflexão importante para as redações, acostumadas a documentar trapalhadas econômicas e instabilidade política.

Sem o dragão da inflação e com uma Nova República pra valer, o jornalismo poderia se dedicar a outros temas e abordagens. Para Paulo Henrique Amorim, a candura dos coleguinhas se traduzia muitas vezes em subserviência. Por isso, ele foi implacável em sua ironia. A frase tem uns vinte anos, não temos mais Paulo Henrique entre nós, mas o dito ainda tem validade.

De Fernando Henrique pra cá, muita água passou sob as pontes do jornalismo nacional, e a relação entre os profissionais da informação e o inquilino do Alvorada teve seus bons e maus momentos. Nem é preciso dizer que hoje o relacionamento é o pior já registrado, com repetidos ataques de Jair Bolsonaro contra a imprensa, a quem considera inimiga de primeira hora.

O presidente da República já xingou, constrangeu, ameaçou e berrou contra repórteres em diversas oportunidades nos três anos de governo. Também já incitou ministros e apoiadores a condenar e a desacreditar o noticiário feito por meios não alinhados. Mais ainda: órgãos de Estado – como a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República – e autoridades – como o ministro da Justiça e seus filhos políticos – investiram contra jornalistas, citando-os para depoimentos ou ainda enquadrando-os na agora extinta Lei de Segurança Nacional. Relatórios de entidades classistas como a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) têm documentado ano-a-ano a escalada de violência de Estado contra o jornalismo no Brasil. Somadas, essas ações acabam cristalizando uma atmosfera hostil e até perigosa para quem exerce a profissão no país.

É importante dizer, no entanto, que se espera que o jornalismo seja crítico, cético e observador dos núcleos de poder. Na prática, a expectativa das pessoas é de que jornalistas sejam firmes no monitoramento das autoridades políticas, acompanhando de perto seus atos e palavras, investigando suas práticas ocultas e denunciando quando há abuso de poder, crimes ou desvio de finalidades.

Trocando em miúdos: os jornalistas não são e não devem ser amigos dos políticos, mas devem fiscalizá-los. Esta postura, inevitavelmente, cria tensões frequentes entre ambos ao mesmo tempo em que há um grau de dependência mútua. Políticos precisam de jornalistas para alcançar suas audiências e satisfazer exigências de prestação de contas e publicidade de seus atos. E jornalistas precisam de políticos pois esses são fontes de informação privilegiadas do campo da tomada de decisões públicas.

Num cenário minimamente civilizado, os dois polos da equação estão conscientes de seus papéis, reconhecem a importância um do outro e mantêm diálogo institucional. Na prática, é mais complicado.

Mario Sérgio Conti nos mostra que parte do jornalismo brasileiro sabia quem era o candidato valentão que vinha de Alagoas e prometia acabar com marajás e demais privilegiados. Paulo Henrique Amorim torce o nariz para o adestramento jornalístico feito por FHC, e poderíamos lembrar que houve comportamento oscilante dos jornalistas que acompanharam os primeiros anos de Lula como presidente.

Ao mesmo tempo em que houve uma adesão dos profissionais do chão de fábrica da imprensa, os donos dos meios de produção nunca engoliram por completo o presidente que contrariava estatísticas e profecias catastrofistas. Com Dilma Rousseff houve menos boa vontade ainda, e são perceptíveis alguns traços de misoginia na cobertura que ajudou a satanizar seu segundo mandato.

A imprensa nacional também sabia quem era Jair Bolsonaro antes de sua eleição à presidência, mas por razões variadas, pouco ou nada fez para alertar o eleitorado dos riscos reais que a sua candidatura oferecia à democracia, por exemplo.

A oito meses das eleições, todos os cenários oferecidos pelos institutos de pesquisa apontam para uma volta de Lula ao Palácio do Planalto. E se isso se confirmar, a relação entre jornalistas e o Poder Executivo federal tende a mudar drasticamente, e para melhor. Digo isso tendo em conta o histórico de Lula em seus dois mandatos. Sim, nos primeiros meses, ele foi arredio e evitou entrevistas coletivas.

Sim, ele se queixou muitas vezes da forma como era retratado pelos meios. Sim, ele ameaçou expulsar um correspondente internacional por uma reportagem que o desagradou, mas voltou atrás. Apesar desses tropeços, não se pode dizer que Lula tenha sido violento e perseguidor dos jornalistas nos oito anos em que esteve no poder. Não, não há equivalência entre sua postura e a de Bolsonaro. E não temos indícios para esperar que o candidato do PT vá dar uma guinada agressiva quando vestir novamente a faixa.

Se os prognósticos das intenções de voto se concretizarem em outubro, é legítimo se perguntar que impactos a assunção de um presidente moderado terá sobre a cobertura política nacional. Jornalistas terão mais condições de trabalhar? O noticiário será menos desacreditado pelo governo e menos hostilizado por parcelas ruidosas da população? Repórteres vão manter-se vigilantes ou vão amolecer seus corações? Setores conservadores que controlam as empresas do setor vão reacender as piras antipetistas?

As perguntas são muitas e todas as respostas são meros palpites. Mas eu acho prudente que as redações passem a discutir eventuais reposicionamentos diante de um governo civilizado, buscando recalibrar suas abordagens. Isso não significa dobrar os joelhos para o novo presidente nem fazer vista grossa diante de erros, deslizes e mal feitos.

O jornalismo precisa se manter atento, não alinhado e consciente das expectativas da sociedade sobre seu papel. Mas um eventual governo Lula – ou de qualquer candidato, exceto Bolsonaro – será muito diferente do atual, pois vai necessitar reativar pontes de comunicação, caso tenha interesse em pacificar a nação, reconstruir instituições e redirecionar o país. Em regimes democráticos maduros e consolidados, imprensa e governo trabalham de forma independente, mas com finalidades que às vezes se confundem.

As redações precisam se preparar para novos capítulos a partir de janeiro de 2023. Bolsonaro é um candidato forte para cogitar sua reeleição, os números mostram. Com ele, a zona de atrito vai permanecer e a violência pode escalar a pontos inimagináveis. Sem ele, novas estratégias de cobertura serão necessárias, seja para acompanhar o novo governante ou mesmo municiar a audiência para comparar e  julgar as duas gestões.

Hoje, fevereiro de 2022, é improvável que Bolsonaro se reeleja, mas se isso acontecer, as redações também precisarão rediscutir como fazer a cobertura de um segundo mandato do governo que mais atacou jornalistas na história da República. Vão expor seus repórteres a mais violência? Vão aderir à barbárie institucional? Poderão reinventar seus procedimentos de cobertura?

As redações aprenderam bastante nos últimos três anos e não caem mais tão facilmente nas armadilhas do diversionismo e das provocações bolsonaristas. Que este aprendizado fortaleça o jornalismo crítico e não reverente.2023 parece estar longe, mas antecipar-se aos movimentos não vai atrapalhar o trabalho da imprensa. Pelo contrário. Pode preparar jornalistas para um novo tempo e outros desafios, o que só tem a beneficiar os cidadãos no seu direito de serem informados.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).