Bemdito

Só quem está perdido pode interromper a caminhada com brusquidão

Um inventário das sombras que passeiam pela madrugada
POR Luan Brito
Foto: Jáder Santana

Um inventário das sombras que passeiam pela madrugada

Luan Brito
luanbritoda@gmail.com

Começou em uma noite, por não suportar mais ficar preso em casa, escrevi um caderno inteiro a partir da experiência de observar as pessoas na rua. Não sei exatamente o que esperava, mas tinha certeza de que, se ainda era capaz de desejar escrever, havia perdido a percepção exata da realidade. A prova disso é que divagava, tinha expectativas, e só quem não vê as coisas tal como elas são pode ser vítima do desejo.

Ver as coisas tal como elas são. Além deste, os outros motivos para observar as pessoas são circunstanciais e naquele momento não me importavam. Com efeito, o método, se é que havia um, era destreinar os olhos pela busca pelo espetacular ou pitoresco e permitir que a rua oferecesse um convite para o ordinário. 

Assim o fiz. A madrugada, o silêncio instalado, a lembrança vívida da rua, quase palpável, preenchida por imagens que por ora precisei ignorar para dar lugar ao narrador inexato que buscava, um narrador que ainda não existia, que não possuía inclinações temáticas e nem vícios de estilo, que lhe cabia, tão somente, observar.

Decidi que ao contrário de Perec e seu lugar parisiense, não escreveria sobre o cenário. Deixaria a rua como um lugar indefinido, desencravado do espaço como um corpo celeste. Basta escrever “rua” e você saberá, portanto, que é para cá que as pessoas vêm para viver e que é aqui se morre. “Rua”, em algum de seus pontos, um carro passa por cima dos farelos do parabrisa de um outro carro, e como ele, os homens pisam sobre o que restou de outros homens. 

De pé, detrás do portão, vi o caderno debaixo da sombra da grade: nove barras grossas como as de uma estreita cela, e a sombra escura cobria apenas a metade da folha em que começara a escrever, como se eu soubesse como iniciar o trabalho, mas o final de todas as linhas fugisse da minha compreensão.

Sobre o primeiro homem da primeira madrugada, o caderno diz: o primeiro homem da primeira madrugada é forte e preto. Veste uma camiseta preta sem mangas; nela, algumas letras estão legíveis, as letras são N, K, e E escritas em caixa alta, em tom verde claro; veste uma bermuda de jeans azul e chinelos de tiras de plástico branco, que cobrem o peito do pé. Não usa máscara. A partir de onde o observo, caminha para a direita. Debaixo do braço carrega um quadro grande, que cobre o corpo quase até a altura dos joelhos. O quadro tem uma moldura de madeira dourada, com cerca de dois dedos de largura. Se trata de uma cena noturna em que se veem pequenas casas. Uma delas, cor-de-rosa, está em destaque ocupando um quarto da imagem. Ela e as outras  projetam seus reflexos no que parece ser asfalto molhado pela chuva.

Nas semanas seguintes, passei a entender melhor algo do que buscava ali. É interessante e um pouco estúpida a ideia de que na linguagem o sentimento seja apenas um apetrecho mimético. Escrever “homem” como uma definição própria, descartando outras associações, e chamar isso de “homem”.

O quarto homem da vigésima segunda madrugada cambaleou e caiu. Outros se aglomeraram em torno dele, o que me poupou de vê-lo. Chamei-os de coletivo, uma topografia de cabeças que se movia e mudava como no momento da aparição de uma falha geológica. Um deles recolhe a carteira do homem caído e caminha para longe com desfaçatez. Chamei-o de quinto homem da vigésima segunda madrugada. 

Rainer Maria Rilke escreveu que nunca havia percebido que existem tantos rostos. Há um número imenso de pessoas, mas o número de rostos é ainda maior, pois cada uma delas possui vários. Estou aprendendo a ver. Ainda é difícil. Investigando o caderno, vejo a frialdade no rosto do narrador que desenvolvi. Ao mesmo tempo, percebo alguma honestidade em sua tarefa ao tentar registrar aquilo que em geral não se nota, de deslizar entre uma pessoa e outra de forma quase instantânea, sem sobressalto, de lhes atribuir importância nenhuma, e com isso, tentar erguer para elas uma tímida bandeira de igualdade.

O sexto homem da septuagésima terceira madrugada é um homem e uma mulher. Escrevo deste modo porque não quero, ou não ouso, separá-los. Eles vêm, vêm sem parar. Ficam aí por um longo tempo, até que a mulher segue adiante antes de virar o corpo para o homem, que ficou para trás. Ambos vestem roupas puídas. A mulher é magra e os seios pouco sobressaem na camiseta apertada. Através do delgado losango formado pelos seus braços apoiados na cintura, vejo o homem ficar de quatro e engatinhar em sua direção. De súbito, trota forte com as patas da frente em um ruído abafado que parece excitá-la. Ela torna a se virar, e ergue a saia para mostrar as nádegas. O homem se aproxima e enfia o focinho entre elas, e assim se movem até deixarem o meu campo de visão. Escrevo que o terceiro homem da septuagésima terceira madrugada é em parte cachorro, e sei que isto não é exatamente uma descrição, e sim o prazer de ter descoberto a semelhança. Isto é, literatura. Também em parte.

Penso na anotação sobre o sexto homem da septuagésima madrugada, na rasura interrompida ao pé da folha, na parte em que o narrador reflete com cinismo sobre sua natureza canina. A desistência da desistência é também uma forma de seguir adiante. Aprendi que embora a História nunca se detenha, o que se passa ao redor pode ser delimitado facilmente. É ridículo, eu penso — ao continuar a examinar o caderno e constatar que resta apenas uma página — é ridículo que a noção do real esteja neste material acessível, como dizem, na epiderme do mundo. No fundo, creio que sempre estamos tentando falar sobre outras coisas. Inventando empecilhos, emperramos nós mesmos as portas que desejamos atravessar. Agora me calo e tiro os olhos da folha onde impunha essas palavras. Que grande besteira, mas preciso continuar. 

Só os que estão perdidos podem interromper a caminhada com brusquidão. É o que penso ao ver o primeiro homem da última madrugada, e faço a anotação inaugural da insônia, lucidez capaz de transformar o paraíso em uma câmara de tortura e a rua num observatório para os cumes do desespero.

Do outro lado, na calçada, há um coqueiro nanico e o primeiro homem da última madrugada recolhe algumas de suas folhas. Neste momento, suspendo o lápis do caderno e me pergunto se, por um segundo, o homem terá baixado os olhos e crispado o rosto tomado novamente por feições infantis, talvez por pensar na construção de pipas. E súbito compreendo, ou imagino compreender a cruel expectativa que direciono a ele, o anseio de que, diferentemente dos demais, seu rosto me revele um espelho; de que ao procurar por traços reconhecíveis, senti como se fosse capaz de perceber além dos pequenos gestos e pudesse, finalmente, lhes atribuir uma causa, imaginar um sentido; amaldiçoá-lo com a existência paralela que têm aqueles que são observados. 

Depois de um segundo, relembro que as coisas precedem as palavras. Se posso ser sincero comigo, preciso admitir que escrevi bastante sobre esses homens e mulheres sem dizer nada sobre eles. Escrevi sobre um “terceiro”, que é o narrador que os observa. Um fantasma que não existe, que anda por todas as vidas e literaturas, a cortina atrás da qual se passa a realidade, um artifício que é a parte mais inútil da criação, e veja, a parte para qual devotamos mais tempo. 

É possível que ainda não tenha dito nada de real? É possível que tenha tido tempo para anotar sobre essas pessoas, e que o tempo tenha passado sem que fosse capaz de atingir qualquer coisa? É possível. Porque este “terceiro” não existe entre elas, e sobre elas não tem nada a dizer.

Desde a primeira madrugada, sou eu, agora, quem se faz de objeto de escrutínio. Noto que meus olhos fogem do homem, este construtor de pipas que em parte é fruto da minha imaginação. Penso que se voltar a olhá-lo, correrei o risco de não escrever nada mais sobre ele, mas sim os equivalentes em palavras que usarei para descrever a sua figura. Penso, finalmente, que a melhor coisa que uma criança pode fazer com seu brinquedo é quebrá-lo, e que o que experimento agora é a força que tem o silêncio quando se estende para além do imediato, um vetor que age como um motor de fricção: se projeta na direção oposta a que é puxado. É impossível estar atento e indiferente.

Fecho o caderno de vez, para bloquear qualquer palavra, mas mesmo assim posso imaginá-las. Aperto-o forte contra o peito, um carro passa e o barulho do motor lembra a chuva. Escrever, penso que tem de ser possível fazer melhor do que isso, mas não acredito imediatamente que sou capaz. Apenas quando o construtor de pipas desaparece e a sua imagem permanece em minha cabeça, a imagem que criei sobreposta à real, é que acredito.

Luan Brito de Azevedo é designer e mestrando em Estudos da Tradução. Assina uma newsletter semanal.

Luan Brito

Escritor, mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.