Bemdito

A vizinha testemunha ocular

É tempo de render homenagem a uma polivalente instituição do cotidiano
POR Felipe Pinheiro
Henri Cartier-Bresson

O feriado pascal é daqueles que chafurda no povo o desejo de confraternizar. Entre católicos de vera, os dias da Paixão de Cristo são recebidos com introspecção e fidelidade resignada aos jejuns, preces e círios litúrgicos. Já os que não vivem sob o toldo da bíblia aproveitam a folga sagrada para engajar em recreações profanas: beber, falar alto, deixar o churrasco passar do ponto na distração da conversa, comprar briga de político, reafirmar, entre abraços e lágrimas de pileque, votos de amizade e selar a promessa furada de, a partir daquele dia, reunir a turma com mais frequência.

Seja a páscoa celebrada na formalidade dos evangelhos ou na informalidade do mundano, a movimentação nos quintais, alpendres e calçadas torna-se prato cheio para uma singela figura do folclore urbano: A vizinha testemunha ocular.

Não se cometa aqui a imprudência injusta de tomar a “vizinha testemunha ocular” pela “vizinha fofoqueira”. Essa é outra. Embora as duas sejam frequentadoras assíduas da vida dos outros, e dividam a característica de ter a janela da rua como lugar favorito da casa, cada uma se posta ali mirando horizontes inversos, sonhando façanhas opostas. 

A vizinha fofoqueira tem de arma a peçonha da malícia, se consagra no palco do malogro, na vontade destrutiva. Já a vizinha testemunha ocular se entende como uma predestinada servidora do povo, uma sentinela das causas alheias, seja por heroísmo inato ou pela falta de quem lhe dê, da janela pra dentro, a importância que ela julga desfrutar da janela pra fora. Se diferenciam, portanto, no atrito de suas intenções: a fofoqueira pretende estragar teu barato, a testemunha ocular pretende salvar o teu dia. 

A vizinha testemunha ocular sabe para qual lado o cachorro fugiu, em qual árvore o gato trepou, onde se perdeu o brinquedo da criança, quem entrou primeiro e quem saiu por último. Sabe ditar de cabo a rabo o cronograma vacinal para todas as idades, caso alguém precise. E sabe indiciar ao técnico da rede elétrica exatamente qual poste faiscou no curto-circuito. Quando a luz volta, é porque ela intercedeu. 

Dotada de memória titânica, é ata viva de tudo que já foi debatido e deliberado nas assembleias comunitárias, um número de protocolo ambulante, sempre a postos para aclarar os planos e interesses coletivos.

Na tensão das crises mais drásticas, consegue traçar à viatura policial, com exemplar compromisso aos autos, o perfil de um assaltante ou o expediente de um marido agressor. E quando estoura na rua um escarcéu, sempre chega uma centena de passos atrás da fofoqueira, porque enquanto a sórdida disparou escada abaixo rumo à calamidade ainda fresca, ansiando chegar a tempo de assistir ao escorrer do sangue e das lágrimas, a vizinha testemunha ocular se delegou o dever de sacar o telefone e acudir por socorro. 

Ao golpe de um telefonema, um apontar de dedo, uma anotação providencial, a vizinha testemunha ocular urde sua teia invisível de suporte. Faz tudo abnegada. Não espera de troco a solução de seus próprios percalços e melancolias. Não cobra que a perguntem como tem passado o dia, ou como passa o aniversário, o natal, a Paixão de Cristo… É uma por todos e por ela mesma.Ao cruzar olhar com minha vizinha testemunha ocular na janela que dá pra rua, sempre a cumprimento na mesura de um “obrigado”. Ela retribui com um rápido aceno disposto. Quase sempre está ao celular. Na passagem, a ouço dizer coisas do tipo: “ […] foi tarde da madrugada, mas eu levantei e anotei a placa”. Nem dorme carregando o país nas costas, a guerreira.