Bemdito

Bordar para criar mundos

No encontro entre Nice Firmeza e Sherazade, o alinhavado de histórias nos convida a atravessar o deserto
POR Ivna Girão
Simone Barreto

No encontro entre Nice Firmeza e Sherazade, o alinhavado de histórias engana a morte e nos convida a atravessar o deserto

Ivna Girão
ivnanilton@gmail.com

Respira com o coração e borda com a alma. Esse é o mantra em tempos de pandemia. Em dias difíceis, aprendi a bordar. O arrastar das horas na companhia de bastidor, agulha e linha. Na cabeceira da cama, uma mandala da artista Nice Firmeza para me inspirar e lembrar: se viva fosse, a artista completaria 100 anos em 2021. Seu colorido é alento. E em um devaneio meu, dá-se um encontro entre Nice e Sherazade – no Mondubim e na Pérsia -, que brincam de contar histórias para sobreviver e bordar para enganar a morte e ver um novo dia nascer. Fazendo alinhavo para trapacear as dores, enfeitando panos para fascinar o Sultão, linhas para inventar mundos fantásticos. E assim, ganhar a batalha da arte contra a morte: mais um dia e mais um bordado. Em 2021, celebro Nice que, no seu centenário, segue viva, inspirando, amarrando as esperanças em um firme nó francês.

Praticar yoga em casa, cuidar de plantas, aprender a cozinhar e fazer os próprios móveis. Nesses dias de isolamento social e Covid-19, novos hábitos. Mas, mesmo antes da pandemia, bordar sempre foi um cotidiano familiar: em dias cheios ou vazios, minha mãe, Ivone Marques, sempre encontrava uma brecha no correr da vida para um ponto e outro. Não herdei a beleza do alinhavo dela, até brinco que meu “bordado é do tipo feio”. Mas isso não importa. Para mim, o bordado é como uma travessia – a linha entrando e atravessando o pano, um movimento forte que inspira o caminhar, o esperançar. E trago aqui as palavras do escritor Ailton Krenak – que já nos convidava a adiar o fim do mundo contando histórias, cantando, dançando (e bordando): “Quando aparecer um deserto, atravesse-o“.

E o bordado hoje não é só a travessia da agulha no pano, é também a transformação de uma arte com potência de transgredir os próprios valores que traz: o bordado não é mais algo doméstico, aquilo que é pacífico, um fazer exclusivamente feminino, uma arte inferior, para passar o tempo. Vejo nas obras atuais de artistas cearenses esse transbordado – uma arte hoje que inquieta, que incomoda, que encanta. E cito o incrível trabalho da artista Simone Barreto, que mostra um traçado subversivo, nada dócil, que rompe com os ideais de feminilidade. Simone nos atravessa.

E nesse nosso diálogo, trago um convite: comece a bordar. Com ou sem aptidão, basta fazer a travessia do pano, a travessia dos seus desertos, e do medo de tentar algo novo. E experimentar um pouco de calma entre cores, pontos e bailados da agulha enfiada na criatividade. E uma sensação de paz num encontro bonito, de juntar os nossos pedaços e fazer bordados, num grande panô, na companhia de Nice Firmeza, de Simone Barreto, de Leonilson, de Iara Reis, de Lúcia Ferreira, de Vanda Maria Almeida, de Lana Benigno, tantas que contam histórias, que bordam para adiar o fim do mundo.

Listo aqui alguns canais para o treino gostoso dessa arte:

Minimuseu Firmeza @minimuseufirmeza
Lúcia Ferreira @debemcomobordado
Iara Reis @iara.reis.rococo
Wilma Farias @uiufarias
Simone Barreto @simonebarretoilustra
Grupo Entrelaçadas @bordadoentrelacadas
Grupo Café com Bordado @grupocafecombordados
Grupo Iluminuras – Literatura e Bordado @iluminurasbordado
Casa Bendita @casa_bendita
Cada Ponto Um conto @cadaponto.umconto
Associação das Mulheres em Ação @budegama
Matizes Dumont @matizesdumontbordados
Sissi Antunes @sissiantunes
Canjaerê Bordados @canjerebordados
Lana Benigno @lanabenigno
Lau Bordando @laubordando
Wà Coletivo @wacoletivo
Larissa Rodrigues @matutabordadeira
Mariana Maia @acoisamaislinda
Clube do Bordado @clubedobordado
Borda @festivalborda
Mariah Escossia @bordadospraiaia
Marisa Tanaka @marisaatanaka
Virginia Hiromi Fukuda Viana @virginiahiromi

A vida não vai tão bem, mas o bordado vai muito bem, obrigada.

Ivna Girão é jornalista e Coordenadora de Comunicação da SECULT. Está no Instagram.

Ivna Girão

Jornalista, historiadora e escritora, é coordenadora de comunicação da Secretaria de Cultura do Ceará.