Bemdito

A linguagem torta dos amantes

Saber comunicar dores, desconfortos e afetos é um dos maiores aprendizados que uma mulher pode conquistar
POR Paula Brandão
Henri Cartier-Bresson

“Quanto mais dolorosa e persistente for nossa carência de um outro, tanto maior será o poder atribuído a quem quer que seja para nos aliviar dessa falta.”
Catherine Bensaid

Três casais: o primeiro, a cada briga acredita que tudo se resolve fazendo sexo; o segundo, vive a crise de um casamento de 12 anos, no qual não há mais intimidade; e o terceiro, um casal jovem apaixonado que não consegue se manter junto porque ele não acredita na fidelidade a longo prazo em um relacionamento. Eu estaria descrevendo situações corriqueiras das conversas nos cafés e bares, mas não é o caso. Trata-se de uma série antiga, de 2007, intitulada Diz que me ama, em que tais casos são paradigmáticos para pensarmos o que esperamos do outro quando nos relacionamos.

Definitivamente não falamos da mesma coisa quando dizemos que amamos, avalia Bell Hooks, em Tudo sobre o amor. Os homens falam com muita autoridade sobre esse sentimento, e o que escrevem tem poder, porque falam de um lugar de seres amados. Já as mulheres, sempre que buscam se expressar sobre o amor,são consideradas como escritoras menores, porque falam do lugar da falta, de que não são suficientemente amadas. Quando conseguem afirmar que procuram um amor, um senso comum machista lê: estão atrás de macho.

Tal qual o casal um, da série, que não consegue dialogar porque tudo acaba na cama, Hooks diz que a nossa sociedade é obcecada por sexo. Basta, de fato, uma observação no Youtube para nos depararmos com tutoriais sobre como melhorar a performance sexual, que posições agradam mais os parceiros e como aprender a gozar. Mas não existe escola para ensinar a amar, porque acreditam que é algo intuitivo. 

A autora diz: “Ensinamos a acreditar que o lugar do aprendizado é a mente, e não o coração, muitos de nós pensamos que o ato de falar de amor com qualquer intensidade emocional será percebido como fraqueza e irracionalidade. E é especialmente difícil falar de amor quando o que temos a dizer chama a atenção para o fato de que sua falta é mais comum que sua presença, para o fato de que muitos de nós não temos certeza do que estamos dizendo quando falamos de amor ou de como expressá-lo.”

Sim, não temos escola e, mesmo com a proliferação de cursos on line sobre tudo no mundo, não tem um só que ensine a amar, seus (des)caminhos e que, acima de tudo, aprendamos a lidar com os afetos. Na série mencionada, Katie procura uma terapeuta de casais para falar do sofrimento pelo casamento de 12 anos ter caído na rotina, e ela queria que o marido fosse diferente do que acabou se transformando. Esmagados na rotina massacrante de trabalhar, pagar contas e cuidar de seus dois filhos, eles esquecem da vida a dois. Para Dave está tudo bem porque a ama, mas ela vive suspirando, querendo mais intimidade e sexo. Temos a sensação de que eles vivem casamentos completamente diferentes e sofrem muito por não serem o que o outro espera.

Mas por que, embora o marido Dave afirmasse seu amor, ela se sentia tão só? Catherine Bensaid, em O essencial do amor, diz que criamos uma expectativa e, quando não é cumprida como acreditamos que um casal deve ser, ficamos frustrados. A solidão que um dos dois carrega pode acabar servindo de único companheiro de uma vida inteira. E muitas vezes essa solidão vem de tão longe que não se pode preencher esse vazio. Tal qual a criança que continua a pedir o que não tem, e nunca se satisfaz com o que recebe, há uma eterna busca pela demonstração do amor do outro, que pode vir através de palavras, carícias ou mesmo flores. Não esqueça: o presente é sobre quem envia, não quem recebe. 

Por que não aceitamos o amor tal qual nos é oferecido? Porque o sofrimento é em decorrência justamente do que o outro é incapaz de dar. Ao identificarmos que não existe a banda da nossa maçã, precisamos aceitar que o outro é diferente de nós, que a forma como ama jamais poderá ser igual a nossa, pois advém de lugares completamente diversos.

No face-a-face, diz a autora, o “dois” é confronto, duas verdades, mas não significa submissão: “Ao me declarares teu amor e quando eu te digo que te amo, não dizemos a mesma coisa. Assim, nem sempre é fácil chegar a um entendimento. O amor não seria, justamente, cada um ficar à escuta do amor que nos aproxima e nos diferencia?”

Nós, mulheres, crescemos acreditando que podemos mudar os outros, sejam nossos companheiros, filhos ou amigos. Ainda cremos que encontraremos alguém que acenda nossa chama de vida e os nossos sonhos através de um relacionamento. Podemos, realmente, atribuir ao outro essa responsabilidade? Precisamos olhar profundamente para nossos abismos e abandonar certas ilusões que não estão na ordem de resolução do outro, mas de nós mesmas.

Daí porque precisamos nos fortalecer, compreender e discutir nossos engodos, desatar certos “nós”. Precisamos falar sobre o amor ou sua falta, do lugar em que fomos educadas para nos posicionar frente aos relacionamentos e sermos mais generosas com nossas dores e afetos. Como diz Bensaid, “ninguém pode transformá-la em uma rainha se ela não chegou a reconhecer-se a si mesma como tal.”

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).