Bemdito

Vivos, esquecidos e amantes

A pulsão de vida que sobrevive à subalternização, mutilação e esquecimento
POR Camille C. Branco
Foto: Paz Errázuriz

A pulsão de vida que sobrevive à subalternização, mutilação e esquecimento

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

Há um romance, de autoria da escritora brasileira Elvira Vigna, cujo título sempre me despertou simpatia especial. Chama-se O que deu para fazer em matéria de história de amor. Com ele, Vigna parece sugerir que a tarefa amorosa é humilde, composta de precariedade, reveladora da vulnerabilidade e desproteção do humano, que, em se tratando de amor, não faz o que quer, mas o que é possível fazer. A cada vez que manuseio o exemplar do livro e releio o título, um diálogo se insinua em minha mente, aos sussurros. De um lado da vida, alguém pergunta: “O que fez você da história do seu amor?”. Do outro lado da vida, alguém responde: “Fiz o que deu”.

Esta fratura da experiência amorosa foi examinada e condensada ao ponto da saturação pela escritora Diamela Eltit e pela fotógrafa Paz Errazuriz no livro fototextual publicado no Brasil pelo Instituto Moreira Salles, intitulado O infarto da alma. As autoras se dedicaram a conviver e fotografar os pacientes de um grande hospital psiquiátrico na cidade de Putaendo, no Chile, com especial atenção para as dezenas de casais apaixonados que se formaram dentro da instituição. Recebidas com abraços e beijos calorosos, Eltit e Errazuriz documentaram a órbita amorosa de corpos cujos rostos foram deformados pelos fármacos, cujos filhos foram interditados por cirurgias de histerectomia que deixaram como rastro apenas cicatrizes e crianças sobreviventes em terreno alucinatório, “bebês de dois ou oito meses”. As fotografias demonstram que, mesmo diante de estados radicais de mutilação e subalternização, os pacientes reiteram, na própria visualidade, sua condição de humanos e, mais do que isto, amantes: vivos e enredados pelo laço amoroso.

Eltit escreve que sabe estar diante de vidas em desprestígio, que sente transitar um mundo quebrado em dois, que separa os asilados da equipe médica, dela própria. No entanto, percorrendo os corredores do hospital, começa a perder as contas dos casais de namorados. As autoras enxergam – e nos apresentam – entre os loucos, a grande metáfora que todos os casais confirmam, “a vida inteira anexada ao outro por uma xícara de chá e um pão com manteiga”. “Eu cuido dela”, alguém lhes diz. Cuidam-se, alimentam-se e elaboram as semânticas de suas histórias de amor, capazes de vicejar em espaços arruinados. Habitando estados de delírio distintos, os pacientes do hospital buscam, na fronteira de perderem-se em outro rosto, a reafirmação de sua profunda humanidade. Apesar de tudo.

Ana Martins Marques escreveu um bonito poema, no qual proclama: “Entre tantas coisas/ numa separação/ é também uma língua/ que se extingue”. Se revirarmos o argumento do poema ao seu avesso, temos, por detrás deste massacre lexical quase sempre sem testemunho, a inferência de que, quando uma união se inaugura, também um idioma comum se constrói. Os homens e mulheres retratados em O infarto da alma parecem ter criado formas tortuosas e ardentes de dizerem “eu te amo”. E não é tão bem demarcada a fronteira do apaixonamento que separa os loucos dos sãos. Ao menos é o que sugere Roland Barthes em seu Fragmentos de um discurso amoroso, quando declara: “O sujeito apaixonado é atravessado pela ideia de que está ou está ficando louco”. Uma força cuja complexidade nos escapa: poucas coisas nos aproximam tanto do descontrole, do desgoverno, quanto o amor. Resta compartilhar este pequeno universo de linguagem, que se imiscui em todas as coisas, e apostar em um voo sem naufrágio. Enquanto suportarem as asas.

Camille Castelo Branco é antropóloga e pesquisadora. Está no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.