Bemdito

Notícias que envenenam

No meio do tormento que tem sido viver no Brasil, o jornalismo anda te fazendo mal também?
POR Rogério Christofoletti
Foto: Nijwam Swargiary

No meio do tormento que tem sido viver no Brasil, o jornalismo anda te fazendo mal também?

Rogério Christofoletti
rogerio.christofoletti@uol.com.br

Qual foi a última boa notícia que você viu por aí? É, aquela que trouxe alívio, esperança… ou aquela que te fez sorrir e pensar que o mundo, a vida e as pessoas valem a pena… Puxe pela memória e tente lembrar quando o jornalismo aqueceu seu coraçãozinho, quando te jogou pra cima… Não precisa se esforçar muito para chegar à conclusão que a tarefa de se informar tem trazido mais sofrimento que alento a muita gente. Isso acontece comigo, com os seus conhecidos e, muito possivelmente, com você.

Mas também! A economia vai mal, a política embrulha o estômago e estamos na maior pandemia do nosso tempo! Há um ano convivemos com esse cenário catastrófico e não há sinais claros de melhora. Estamos exaustos emocionalmente, com medo da doença e nos sentimos impotentes para resgatar o que chamávamos de vida normal. As crises política, econômica e sanitária ficam mais agudas com a ausência de lideranças capazes de enfrentá-las e com nossa incapacidade de imaginar saídas. Até tentamos, cavando pistas na mídia e nas redes sociais, mas somos afogados por oceanos de notícias ruins. Nosso sofrimento só aumenta!

Você pode desativar as notificações em seu celular, trocar de canal e se afundar nas intermináveis discussões sobre aquele famoso reality show. Mas afundar a cabeça no buraco não faz evaporar os problemas da vida; eles só não ficam visíveis. Você também pode xingar o jornalismo –  que “só te traz desgraça” – e até culpar a mídia por “só mostrar o lado pessimista da vida”. Mas deixar de se informar só vai aumentar a sua distância do mundo. Você não vive se queixando do isolamento social em que nos meteram?

O problema não está na notícia nem no mensageiro. O noticiário é como um cardápio de restaurante. É uma descrição do que temos para servir naquele dia. Não traz todas as comidas possíveis de serem preparadas, e às vezes nem as suas melhores versões. Depende dos ingredientes disponíveis e da capacidade culinária dos cozinheiros. Mas um cardápio é feito também com base numa imagem que o dono quer dar ao seu restaurante e do que ele imagina que seus clientes querem comer. Outra coisa importante que eu nem precisava lembrar: não se come o cardápio. Isto é, os nomes dos pratos não são as refeições, mas apenas uma descrição delas.

No jornalismo é parecido. As notícias não são os fatos, mas relatos possíveis de algumas coisas que aconteceram naquele período. Quem as prepara tem suas preferências, condições e limitações, e faz uma ideia do que seu público quer ou precisa.

O ruim nessa história é que o cardápio diário das notícias não tem estimulado os clientes a se alimentar; pelo contrário. Tem gerado repulsa, nojo e, em casos mais graves, levado à inanição. Tem sido comum também que nos faça passar mal.

O drama é que o jornalismo não pode fazer como o restaurante que escolhe só servir junky food. Periga matar o cliente. Meios jornalísticos precisam equilibrar elementos que aticem a fome do público e que contenham nutrientes que o alimentem. Com a pandemia, a mídia e os jornalistas perceberam isso mais uma vez. Se o setor estava ressentido com perda de credibilidade, o espalhamento do vírus levou muita gente a voltar a buscar fontes confiáveis de informação no jornalismo. Aumentou o consumo de notícias e houve até crescimento de assinaturas de certos produtos e serviços. A sensação nas redações era de retomada do pacto de confiança com o público e o resgate da utilidade e relevância na vida social. Meses se passaram e pesquisas começaram a detectar um certo cansaço informativo. Estávamos todos soterrados de notícias, e elas eram quase sempre muito ruins. Começou a fazer mal… Foi como uma ressaca, e sabemos como algumas delas são horríveis e inesquecíveis.

Você pode até achar que o jornalismo anda envenenando a sua vida, mas não é tão simples assim. Se fosse, bastaria fazer como os doentes celíacos que – para não passar mal – evitam ingerir alimentos com glúten. Era só deixar de ler notícias. As pessoas intolerantes à lactose podem recorrer a comprimidinhos que ajudam seus organismos a digerir bem aquele delicioso queijo. Mas ainda não inventaram nenhuma cápsula que blinde nossos estômagos das notícias que nos irritam ou deprimem. O problema não está nas notícias, mas nos acontecimentos, nos fatos.

O noticiário não é o único local sombrio e opressor que frequentamos, não é mesmo? Pense nas redes sociais ou vá mais longe e se pergunte: em quais lugares na internet e na vida você sente conforto, segurança e acolhimento? Identificar esses nichos é importante para se refugiar neles, de vez em quando. Mas não se pode abrir mão de saber o que anda acontecendo por aí. Podemos buscar alternativas ao glúten e à lactose, mas não existem alternativas para notícias, pois elas interferem em nossas vidas, para melhor ou para pior.

O jornalismo precisa melhorar sim! Precisa contar os corpos das vítimas da Covid, mas também deve contar histórias inspiradoras; precisa mostrar as mazelas diárias, mas não pode deixar de nos lembrar que, todos os dias, pessoas inventam e perseguem soluções para seus problemas. O jornalismo precisa se tornar um lugar um pouco melhor, um pedaço da vida mais aceitável. Mas não basta. Melhorar o mundo ajuda a melhorar as notícias; melhorar nossas relações pessoais faz das redes na internet lugares menos tóxicos e venenosos.

Jornalistas e meios têm uma lista longa para cumprir: informar, investigar, desmentir, orientar… Precisam também se mostrar próximos e confiáveis, e – de alguma forma – conectar pessoas, pois a sociedade é um exercício coletivo de gestos e ações. E não sairemos individualmente das crises econômica, política e sanitária. Se as ameaças atingem a todos, só poderemos enfrentá-las juntos. Pessoas não são ilhas. Pessoas são continentes.

Rogério Christofoletti é professor de Jornalismo na UFSC e autor de “A crise do jornalismo tem solução?”. Ele está no Twitter.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).