Bemdito

Notícias que mais desejamos

Você também já quis reescrever as manchetes para modificar o mundo ao seu redor?
POR Rogério Christofoletti
Foto: Jorge Gardner

Você também já quis reescrever as manchetes para modificar o mundo ao seu redor?

Rogério Christofoletti
rogerio.christofoletti@uol.com.br

Perto do início do ano, quando eu ainda tentava dar algum formato a esta coluna, cheguei a propor aos editores do Bemdito que meus textos fossem notícias curtas de um futuro não muito distante, mas ligeiramente melhor. Seriam notas fictícias de um horizonte que eu queria enxergar: a banda larga de internet chegando a todos os cantos do país, o renascer de uma cidade-fantasma congelada pelo inverno nuclear, a recomposição da floresta em grandes áreas devastadas, a queda de um governante terrível pela organização popular… Eram notícias de um futuro imaginado, acalentado num tempo cujo noticiário é sempre tão sombrio e incerto.

Abandonei a ideia nos primeiros rascunhos porque percebi que apenas imaginar boas manchetes não torna o mundo necessariamente melhor. A conclusão é banal, mas só cheguei à ela depois dos primeiros ensaios. (Para mim, escrever é uma forma de compreender o mundo de fora e o aqui de dentro).

Reiteradamente, o que desejamos é que as notícias reflitam uma realidade melhor. Algumas pessoas chegam a berrar contra a televisão, despejam sua fúria nas caixas de comentário nos portais, pegam nojo do jornalismo. Em todos nós, mais ou menos, resta a ideia de que as notícias são o espelho exato do mundo.

Esta é uma ideia equivocada porque a realidade é muito mais complexa e contraditória do que as migalhas cuspidas pelos meios de comunicação. As notícias são relatos sempre parciais e incompletos de alguns acontecimentos. Parciais porque dizem respeito a uma parte deles. O aumento dos juros faz parte de um contexto macroeconômico; a derrota do seu time é resultado de muitos fatores; a explosão da violência não pode ser medida apenas no aumento dos homicídios daquela semana… O noticiário está sempre incompleto porque não é possível oferecer o relato de todas as coisas que acontecem e porque a história ainda está se desenrolando bem diante de nós. Nem sempre de forma visível ou compreensível, é preciso que se diga.

Mas notícias são o que são. Imperfeitas, insuficientes, incompletas; às vezes, incorretas, desagradáveis, revoltantes; noutras vezes, esperançosas, úteis e necessárias. Desejar que as notícias sejam melhores é importante; faz lembrar da capacidade humana de resistir às pressões, de como muitos de nós persegue o bem comum… Mas o desejo tem limites. Como as notícias. Esperamos muito mais do que elas podem nos dar. As notícias são só… notícias: narrações a partir de fatos, relatos a partir de discursos, repercussões, versões, estilhaços do cotidiano…

Os mais céticos – ou cínicos? – dizem que só se desilude quem se permite iludir. Então, a forma mais segura de viver é não alimentar esperanças. Assim, blindamos o espírito das frustrações diárias, não quebramos a cara. “De onde menos se espera, daí é que não sai nada”, já profetizou o Barão de Itararé que, aliás, nem era barão, mas jornalista e frasista dos melhores…

Gostar e assumir essa postura diante da vida pode ajudar alguns, mas pode simplesmente ser impossível para outros, mais perseverantes e inconformados. Podemos colocar nesse clube os otimistas e os teimosos também, entre os quais me incluo. Desejar que o noticiário seja mais leve é querer que a realidade esteja menos calamitosa, e que tenhamos alguma margenzinha de ação, alguma possibilidade mínima de melhorar a situação. Não basta, mas, pelo menos, prepara o espírito, alinha os chacras, dá uma direção.

Entendo que é preciso reconhecer também que existe bastante gente trabalhando para – na impossibilidade de oferecer boas notícias – oferecer um jornalismo melhor. Falo do Brasil. A maldita pandemia e o seu enfrentamento terrível pelos governos têm provocado mudanças sensíveis no noticiário. É possível ler manchetes que não douram a pílula e dizem que o presidente da República mente e que o ministro da saúde distorce os fatos. Tem sido frequente encontrar reportagens que não apenas corrigem declarações oficiais, mas investigam e denunciam atos imprudentes, inconsequentes e até criminosos. Diante do atraso ou imprecisão das estatísticas ministeriais, um conjunto de empresas jornalísticas se juntou para fazer elas mesmas a contabilidade macabra de mortos e infectados por Covid-19.

Noticiar tem sido um desafio extremo para os profissionais que se dedicam a isso. Eles arriscam se contaminar diariamente nas ruas, podendo levar o vírus para as redações e, o que é pior, para suas casas. As equipes estão cada vez mais enxutas, em alguns locais os repórteres são hostilizados, e todos estão exaustos. Sem contar que ninguém pode se preparar para uma cobertura tão intensa e longa de um evento totalmente inédito.

O jornalismo brasileiro tem se desdobrado para reagir ao negacionismo fanático, à truculência bolsonarista e à mortalidade do vírus. Diversos meios e profissionais têm feito isso, embora ainda existam os adesistas que nem deveriam ser considerados jornalistas.

Crises combinadas tendem a nos fazer acreditar que são infinitas e invencíveis. Não são. A economia vai mal, há 14 milhões de desempregados e falta comida na geladeira das pessoas; a política não aponta soluções para nossos (muitos!) problemas; e a peste produz medo e mortes como nunca.

Impossível ignorar esses fatores, pois eles tendem a desmotivar e desmobilizar ações coletivas. O saldo imediato é cada um saindo desesperado atrás da própria sobrevivência.

Difícil esquecer que somos limitados em nossos atos, e quem está na posição de agir e mudar a direção do jogo pouco ou nada faz para alterá-lo.

Importante lembrar que os problemas são coletivos e só temos alguma chance se enfrentarmos essas crises juntos. Sozinho ninguém sai dessa. Não adianta viajar para se vacinar em outro país se continuarmos como párias globais. Não adianta insistir na retomada da economia se não houver pessoas vivas para consumir e fazer a roda girar. E também de nada vale fechar os olhos para as notícias ruins, pois elas não vão deixar de ser publicadas.

Oferecer manchetes que nos agradem não é função do jornalismo. Por outro lado, as redações não são habitadas por sádicos perversos. Ser portador de boas novas também faz muito bem aos mensageiros, embora nem sempre seja possível. O jornalismo ainda está em busca das notícias que desejamos… O que cabe aos públicos, então? Continuar a esperar um noticiário mais leve, manter o senso crítico diante do que lhe chega ou, quem sabe, ler nas entrelinhas mensagens que animem, inspirem e fortaleçam. Já pensou se cada texto trouxesse vestígios para este alento? Poderiam ser informações cifradas, parábolas ou frases ocultas, formadas a partir das iniciais de cada parágrafo…

Rogério Christofoletti é professor de Jornalismo na UFSC e autor de “A crise do jornalismo tem solução?”. Ele está no Twitter.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).