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Teatro da falta de noção

O que uma “encenação” em um julgamento de feminicídio nos diz sobre o espaço das mulheres no Direito
POR Geórgia Oliveira
The Abduction of Hippodamia, or Lapiths, and Centaurs (Peter Paul Rubens)

O que uma “encenação” em um julgamento de feminicídio nos diz sobre o espaço das mulheres no Direito

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

No último dia 10 de maio, Luis Felipe Manvailer foi condenado a 31 anos, 9 meses e 18 dias pelo feminicídio de Tatiane Spitzner. A advogada de 29 anos foi morta por asfixia mecânica, em julho de 2018, em Guarapuava (PR), e encontrada após ter caído do 4º andar do apartamento em que morava. As imagens do circuito de segurança do prédio mostraram cenas fortes de agressões do acusado a Tatiane momentos antes do crime. Embora negue ter cometido o assassinato, Manvailer foi condenado pelo Tribunal do júri não somente por feminicídio, mas também por fraude processual.

Mas a pauta de notícias oriundas do julgamento não ficou restrita à condenação. Chamou a atenção a conduta do advogado de defesa, Claudio Dalledone Júnior, ao promover uma “reconstituição” das agressões anteriores à morte de Tatiane. As cenas originais mostram Manvailer perseguindo Tatiane pela garagem do prédio. Ao entrar com a vítima no elevador, segue agredindo-a com murros, empurrões, puxões de cabelo. Impede que a vítima fuja quando o elevador para em determinado andar, puxando-a de volta à força.

Qual foi a surpresa quando começaram a circular imagens de que o advogado de Manvailer, em plenário, havia utilizado a presença de uma colega advogada, Maria Eduarda Lacerda, para simular de forma extremamente realista as agressões que o réu perpetrou contra a esposa na noite do crime? Ele segura a advogada pelo pescoço, sacode e empurra a colega, ela quase cai e, depois dessa cena, ainda mostra as marcas provocadas pela “encenação” em seu pescoço para os jurados. Dalledone Júnior simula ainda uma esganadura, segurando a colega novamente pelo pescoço, só que com as duas mãos, enquanto cita argumentos que, segundo ele, inocentariam o seu cliente.

Se você, leitora ou leitor, ainda não assistiu as imagens, insisto para que veja o vídeo e leia a matéria realizada pelo portal Migalhas sobre o ocorrido. Após a repercussão negativa do caso, o advogado divulgou um vídeo ao lado da colega criminalista em que afirma que: “ela participou de uma dinâmica, uma dinâmica simulada, reproduzida em plenário, para que o cidadão jurado tivesse consciência de que seria impossível uma esganadura sem deixar marcas. Então nós treinamos essa dinâmica. (…) Ela não teve nenhuma lesão, ela não foi subjugada, ela é uma advogada iniciante, excepcional mulher da advocacia, que muito nos orgulha em fazer parte da nossa equipe. Não é isso, Maria Eduarda?”. A advogada confirma e diz que “foi uma honra poder participar e auxiliá-lo nessa dinâmica”.

A encenação choca não só pela forma inconveniente de apresentá-la, mas pela existência de métodos igualmente didáticos e menos violentos para expor a linha de defesa adotada, e também pela falta de discernimento para questionar se aquela era realmente uma boa ideia. Chama atenção também a facilidade com a qual se pensa que simular uma agressão utilizando o corpo de uma colega advogada para tal é pertinente e que não chocará os jurados, o juiz, os promotores e, bom, o país.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) afirmou que irá apurar as condutas. Também se manifestou, em vários vídeos e notas, a equipe do advogado, informando que aquela era uma atividade comum e que “o lugar da mulher deve ser onde ela quiser”. Mas esse lugar precisa ser o de ser chacoalhada e esganada até quase cair no chão, como sofreu a vítima? Por que não o lugar de protagonismo no plenário para defender o réu?

Que o procedimento do tribunal do júri e a performance envolvida neste espaço são extremamente específicos dentro do sistema penal brasileiro, isso ninguém questiona. No entanto, penso que chegamos em um momento ímpar da história jurídica brasileira para discutir a utilização de recursos que tão facilmente atentam à dignidade das mulheres no espaço do plenário, principalmente, quando tratamos de crimes que envolvem violência de gênero.

Em um país no qual a Suprema Corte declarou, há menos de dois meses, que argumentações misóginas como a legítima defesa da honra não devem ser utilizadas no tribunal do júri, existe espaço para que advogadas sejam utilizadas para encenar agressões? E questiono mais amplamente: por que parece existir tanta resistência para repensar as táticas de defesa utilizadas em julgamentos de feminicídio, abandonando aquelas que são atentatórias à dignidade das vítimas, que, muitas vezes, não têm mais chance de se defender quando são culpabilizadas pela própria morte?

Concordo com as palavras da professora Soraia da Rosa Mendes quando lembra que, nas Ciências Criminais, nós, mulheres, fomos por muito tempo mais “faladas” do que efetivamente falamos. Nas palavras da autora, em todos os ramos desse campo de pesquisa fomos variáveis, não sujeitos. Isso vale também para a atuação de advogadas, que ainda lutam para protagonizar espaços historicamente vistos como masculinos desde a formação em Direito, notadamente o campo criminal.

São raras as doutrinadoras em Direito Penal e Processual Penal que utilizamos ao longo das disciplinas. Eu mesma só descobri autoras nesses campos quando iniciei minha atividade de pesquisa. Li Nelson Hungria, doutrinador que morreu em 1969, antes de conhecer Soraia da Rosa Mendes, Vera Regina Pereira de Andrade, Alice Bianchini, Janaina Matida e tantas outras pesquisadoras e professoras com as quais hoje posso dialogar em minhas pesquisas.

Nelas, encontro a disposição de estudar o Direito com novos olhos, a partir de uma perspectiva crítica e indagadora, que não se amolda à visão muitas vezes androcêntrica do campo criminal. É também nelas que encontro um espelho que não tive em sala de aula: todas as oito disciplinas de ciências criminais que tive ao longo da graduação foram ministradas por professores homens nos quais nem sempre pude encontrar a representatividade que precisava, embora eles tenham contribuído enormemente para a minha formação.

Gostaria de ver essas autoras sendo estudadas com destaque em salas de aula, com cada vez mais professoras de Direito Penal e Processual Penal. Gostaria de ver a colega Maria Eduarda como protagonista da defesa de casos importantes e da salvaguarda das garantias que todos os acusados devem ter, e não ganhando as manchetes por uma polêmica desagradável e dispensável como essa. Mais do que nunca, as garantias devem ser fortalecidas, mas a misoginia deve ser rechaçada, porque dela não derivam argumentos, mas sim ataques. E de ataques à vida das mulheres esse país já está cheio.

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.