Bemdito

“Vereador preso por atropelar uma mulher”

Entre o discurso e o agir político, o longo caminho a ser percorrido para ser um verdadeiro aliado de luta
POR Geórgia Oliveira

No dia 25 de novembro é comemorada a data que marca o dia internacional de combate à violência contra as mulheres e, a cada ano, cresce a importância dessa data como marco de reflexão e exigência de ações capazes de promover a defesa, a proteção e a assistência a meninas e mulheres, salvaguardando a vida e os direitos sobretudo daquelas que estão em situação de violência. No entanto, nos dias posteriores ao 25/11, ainda no espaço dos 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres, um caso de tentativa de feminicídio ocorrido em Fortaleza apontou a dificuldade e o embaraço em reconhecer e responsabilizar aqueles considerados “aliados” como agressores.

O título dessa coluna foi a manchete que muitas de nós lemos, incrédulas, no final da noite da segunda, dia 29/11. O vereador de Fortaleza Ronivaldo Maia, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi preso em flagrante por tentativa de feminicídio, após atropelar uma mulher com quem mantinha um relacionamento, causando-lhe várias lesões por todo o corpo

Seja pela pessoa do acusado, seja pelo cargo que exercia, seja pelo partido ao qual é filiado, a incredulidade passava pelo fato de que apenas quatro dias antes, no mesmo 25 de novembro, o vereador discursou na Câmara Municipal de Fortaleza, defendendo o fim da violência contra as mulheres e ressaltando seu compromisso com a pauta, apontando que “há várias maneiras — e a gente precisa adotar todas elas — [de] enfrentar esta situação, que vai desde a gente punir a agressão, porque é muitas vezes a impunidade que estimula”. No entanto, o Ronivaldo já havia sido acusado anteriormente por crimes no âmbito da violência doméstica, fato que colaborou para manutenção da sua prisão preventiva e que escancarou como é usual apropriar-se da luta contra a violência de gênero.

O caso de tentativa de feminicídio cometida por Ronivaldo ocorreu na mesma semana em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado Brasileiro pela omissão e impunidade na apuração do caso de feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, morta em junho de 1998 pelo então deputado estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima. O foro privilegiado e as tentativas de adiar o julgamento fizeram com que Aércio apenas tenha sido condenado em 2007, tendo morrido no ano seguinte sem cumprir nenhum período da pena. 

No caso de Ronivaldo, embora o vereador não possa se valer dos mesmos benefícios de foro privilegiado que mantiveram a impunidade no caso Márcia Barbosa, sendo julgado pela justiça comum e sem necessidade de autorização da casa legislativa que compõe, é importante perceber duas questões: primeiramente, como as violências cometidas por pessoas públicas ou que gozam de privilégios sociais passam à margem da responsabilização com maior facilidade e por muito mais tempo, precisando de uma repercussão igualmente maior para que sejam reconhecidas. Não é à toa que a vítima afirmou que, caso as pessoas no entorno não tivessem presenciado a agressão, ela não teria procurado as autoridades para denunciar o vereador, por ele ser uma pessoa pública. O medo de ser responsabilizada pela própria violência sofrida, da exposição e do julgamento moral e social ainda recai de forma cruel sobre as mulheres em situação de violência. 

Em segundo lugar, a constatação nada surpreendente, mas sempre deplorável, de que nem mesmo na presença daqueles que se apresentam como “aliados” ou “companheiros de luta” e que dividem com muitas de nós espaços de combate à violência contra as mulheres podemos estar verdadeiramente seguras. O embaraço de muitos e muitas em reconhecer a violência cometida por Ronivaldo e prestar solidariedade à mulher antes de tentar defender a pessoa do acusado ou de ressaltar seu “compromisso histórico” com a pauta do combate à violência de gênero mostra como esse reconhecimento pode ser doloroso para alguns, mas precisa ser feito com firmeza. Destaco nesse sentido a forma assertiva como a vereadora também filiada ao PT Larissa Gaspar se pronunciou por meio das redes sociais, não deixando dúvidas sobre como a prioridade em todos os casos de violência deve ser sempre de apoio à vítima.

Apesar do quadro geralmente pessimista trazido nesta coluna, é importante notar que várias foram as manifestações de rechaço ao crime cometido pelo agora licenciado vereador, tendo sido sua filiação ao PT suspensa para a apuração por comissão disciplinar paritária no âmbito do partido, bem como a denúncia do acusado realizada pelo Ministério Público por tentativa de feminicídio, dando início ao processo criminal destinado a apurar o crime.

No dia 06 de dezembro é comemorado o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Termos como “passar pano”, “desconstrução”, “esquerdomacho” e “masculinidade tóxica” têm nos ajudado enquanto sociedade a problematizar e ressignificar a forma como nos relacionamos com as pautas de combate à violência e à desigualdade e como reagimos a tantos casos de violação que ganham as manchetes e as redes sociais todos os dias. No entanto, continua urgente refletir em um nível muito mais profundo sobre o papel dos homens no combate à violência e lembrar que prestar aliança a uma causa e comprometer-se com uma luta social é muito mais do que uma autoafirmação, é um agir para o outro: implica coerência, responsabilidade e autorreflexão constantes. Mais do que se dizer aliado, é preciso agir consistentemente como um.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.