Bemdito

A violência oculta do silêncio e da linguagem

Como a naturalização da violência dificulta o reconhecimento de violações
POR Desirée Cavalcante
Foto: Vivian Maier

Como a naturalização da violência dificulta o reconhecimento de violações

A necessidade de adoção de padrões inclusivos e não-discriminatórios é uma questão que tem ganhado centralidade na construção da imagem e da estruturação interna de empresas e órgãos públicos. Ao mesmo tempo em que se luta para que as mudanças culturais acerca das responsabilidades ambiental e social – e, ainda, da formação de práticas de governança -, o combate à corrupção e a discriminação não se limitem a meros discursos, é comum serem verificados entraves naquilo que é menos evidente: no que não é dito ou no que é oculto pela linguagem tradicional. 

Apesar do esforço das instituições, é evidente que há uma considerável dificuldade de utilização de uma linguagem inclusiva, seja pelo desconhecimento das críticas feitas a determinados padrões, seja pela incompreensão dos sentidos que eles escondem. Em acréscimo, o profundo grau de naturalização da violência simbólica dificulta o reconhecimento das violações.

A legislação não está imune a esse debate. Na verdade, está repleta de usos de termos excludentes ou questionados, como raça e sexo.  

Em virtude disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já foi consultado, por exemplo, acerca da amplitude do termo “sexo”, mencionado na Lei das Eleições. Tradicionalmente concebida como uma categoria ligada à definição biológica, a expressão seria suficientemente abrangente para compor a diversidade da identidade de gênero das pessoas? Era esse o questionamento.

O Tribunal se manifestou a fim de estabelecer que, na realidade, apesar do termo utilizado, a lei se refere ao gênero, e não ao sexo biológico, de modo que “tanto os homens como as mulheres transexuais e travestis podem ser contabilizados nas respectivas cotas de candidaturas masculina ou feminina”. Em outra ação recente, o TSE lançou um Guia de Linguagem Inclusiva para a Flexão de Gênero, na busca de alcançar um número muito maior de pessoas em suas comunicações.

Outra categoria de uso comum – inclusive em leis e publicações oficiais -, que é alvo de severas contestações, é “raça”. O termo, que também é carregado de pressuposições biológicas, é contestado em relação à sua compatibilidade com a complexa diversidade da genética humana. Além disso, historicamente, é utilizado como marcador social de discriminação e subalternização, relacionado à cor da pele ou à etnia, o que o faz ser rejeitado por muitas pessoas.

É notório que ainda há muito o que refletir e evoluir na linguagem padrão adotada em comunicações sociais. Como um campo em disputa, não surpreende que, ao mesmo tempo em que se tenta criar modelos culturais mais inclusivos, haja grande resistência a modificar a utilização de termos segregatórios. 

No entanto, não se trata de melindre, como alguns setores resistentes poderiam supor. Além da violência simbólica, a recusa ao reconhecimento da existência da diversidade impacta, diretamente, por exemplo, na coleta de dados para a formulação de políticas públicas, na medida em que só é possível formular algo para um grupo cuja existência e dignidade são reconhecidas.

A linguagem não é algo marginal ou residual nas nossas construções sociais. Ela pode ser um meio amplo de desconstrução da legitimidade e do reconhecimento de grupos, assim como pode operar como forma de criação de redes de proteção. Deve, portanto, ser pensada como algo central na reconstrução de práticas institucionais realmente inclusivas. 

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.