Bemdito

O mestre-palhaço

Sobre os ressentimentos acumulados e sua potência de violência
POR Ricardo Evandro

Assim que assisti ao filme Coringa (2019), me recordei de outro personagem também feito pelo ator norte-americano Joaquin Phoenix. Como Coringa, ou Joker, no original, arque-inimigo de Bruce Wayne, o Batman, Phoenix lembrou muito o papel que fez em um filme anterior, chamado de O mestre(2012). Mas, diferentemente do inimigo do Batman, em O mestre, Phoenix faz um discípulo fiel do criador de uma seita esotérica e pseudocientífica. 

Supostamente, O mestre é uma estória inspirada no criador da religião conhecida como cientologia – proibida na França, segundo decisão judicial. Em verdade, a personalidade real do criador da cientologia, L. Ron Hubbard, é retratada em O mestre no papel do líder da seita, interpretado pela já falecido ator Philip Hoffman, mas, ao mesmo tempo, também pelo personagem de Phoenix. Os dois personagens formam a biografia do mestre, dividido entre um personagem elegante, sedutor e picareta (Hoffman), e o outro, psicótico, alcoólatra, antissocial e violento (Phoenix). 

Tanto em Coringa, quanto em O mestre, há algo que me importa mais: a psicologia das massas retratada por ambos os filmes. Mas para se entender a psicologia das massas de Coringa é necessário destacar que, para além das questões edipianas entre o Arthur Fleck – nome verdadeiro do Coringa, o Joker, nos quadrinhos – e sua mãe abusiva, muito importante é o modo como Gotham é retratada. 

Gotham é retratada em Coringa de modo muito parecido com a Nova York pós-hippie, da época da crise do petróleo, no final dos anos 70, início dos anos 80 – período das políticas econômicas de Regan, nos EUA, e de Thatcher, no Reino Unido, assim como do General Pinochet, no Chile. Uma cidade marcada pela delinquência juvenil, criminalidade, lixo espalhado pelas ruas, cidade abandonada pelo poder público, uma grande discrepância socioeconômica entre classes – algo que me fez lembrar imediatamente de Belém, de hoje, ou talvez de sempre. Enfim, uma cidade perfeitamente capaz de produzir um sujeito como o Arthur, o Joker

Mais do que um paciente psiquiátrico, ou um incel, Arthur pode representar uma espécie de liderança, de inspiração para uma multidão insatisfeita. Phoenix faz um homem de 40 anos, infantilizado, que tem um subemprego, o qual lhe faz vestir como palhaço de vendas. É marcado por um comportamento esquisito, uma síndrome psiquiátrica que o faz rir quando está ansioso, em situações de estresse. Arthur, o Joker, o Coringa, foi vítima de abuso infantil, e, por isto, é marcado por traumas profundos, vive em grave sofrimento psíquico, o que lhe causa exclusão social, retroalimentando sua inabilidade com pessoas. Nos seus cadernos pessoais, anotações avulsas, chistes que manifestam a sua dor. Mas também há desejo, bastando lembrar das colagens de imagens pornográficas – além de suas alucinações românticas com sua vizinha, de quem não sabemos ao certo seu destino no filme, podendo ter sido brutalmente assassinada, junto com sua filha.

Mas voltando ao meu ponto, o que mais me chamou a atenção neste filme é o modo como o tipo como o Joker, quem está dentro e fora da lei moral, jurídica e sexual, é o mesmo sujeito capaz de tomar uma atitude radical, desejada pela massa de neuróticos “normais”, com a admiração pela sua coragem de ser quem é. Entre a legítima defesa e o desejo ressentido de matar, o Coringa não é um além-do-homem niilista sobre quem falava Friedrich Nietzsche, quando assassinara, como  Raskolnikov, em Crime e castigo, os executivos de Thomas Wayne – pai de Bruce, quem se veste de homem-morcego pela madrugada. 

Não se trata de mero psicopata contrário aos valores cristãos e ao humanismo, ou de uma pessoa imatura e inábil socialmente. Ele é o ressentido, mas que encontra sua força por meio do seu próprio ressentimento, despertando nas massas a admiração por ter coragem de fazer aquilo que nenhum pacato neurótico tem coragem de fazê-lo, mas que o deseja – inclusive, ou sobretudo, sexualmente. Impressionante como pessoas comuns, ditas “normais”, podem se agremiar em torno do entusiasmo por alguém que fala meias-verdades em programas de auditório, carregando uma arma e tendo como antagonista a vaga ideia de “sistema”, personificada sobre um sujeito de poder, famoso, como o apresentador de TV eito por Robert De Niro.

Com isto, não quero dizer que o filme se trata da revolta da classe trabalhadora ressentida pela riqueza dos Wayne. Não. O filme pode, sim, ser lido como uma crítica nada velada à austeridade econômica, ao capitalismo, ao Wall Street, ao 1% contra 99%, a os seus yuppies cheios de pó branco no rosto – como palhaços? –, uísque e arrogância. Por outro lado, também não acho que Coringa se trate de uma apologia à violência revolucionária, que se rebela contra os engravatados ricos, no mercado financeiro e na grande mídia. 

Meu ponto é que Coringa pode ser um filme sobre como as pessoas podem se perder em torno de uma figura psicótica, que transita entre a realidade e a alucinação, entre seu gozo e os limites éticos e jurídicos, fazendo-a de seu líder supremo, um führer. Falo do impressionante fascínio que sujeitos extravagantes, metidos a corajosos, em atitudes e discursos, podem causar numa multidão. E isto talvez possa revelar como todos nós seguimos a lei ditada por quem não se submete a ela. 

Coringa, pode ser sobre como este tipo inconsequente, que apenas aparentemente é rebelde contra o genérico “sistema”, pode, sim, movimentar massas, motivado pelo seu drama pessoal, pseudo-heróica. O personagem do Coringa é sobre quem transforma seu sintoma, seu fracasso social e psíquico, seu estado de negação quanto à sua incapacidade de lidar com a ficção do seu mito pessoal, em causa política, em liderança violenta, mas não revolucionária – aliás, até bastante fascista. 

Como o líder da seita inspirada na Cientologia faz, em O mestre, Arthur, em o Coringa, é aquele quem pode se aproveitar das frustrações, das promessas utópicas não cumpridas, dos sonhos falidos de maio de 68, da “era de aquário” californiano, da verdadeira possibilidade de emancipação social, mas a seu favor, à sua própria “jornada do herói”. Longe de ser um líder revolucionário, Coringa é o típico líder fascistóide, ou sobre como os sonhos hippies se subvertem sob um líder de seita pseudofilosófica – e nem estou falando somente da cientoliogia, necessariamente, e sim, lembrando dos assassinos de Sharon Tate e de seu bebê.

 Como um político-palhaço, Coringa e estes tipos reais tem meta bem estabelecida: ser reconhecido, aproveitar-se das pessoas e legitimar seus crimes. É uma potencial liderança, capaz de se aproveitar facilmente das insatisfações legítimas, potencialmente transformadoras, “progressistas”, mas transformando-as em um grande movimento massificado, que anseia por encontrar alguém semelhante ao pai primevo, constituinte das regras sociais.

Coringa, portanto, talvez levante a hipótese de como manifestações sem consciência de classe, sem politização devida quanto às suas próprias necessidades, iludidas por promessas genéricas, podem se tornar um pelotão de pessoas que encontram amparo na violência de um mestre-louco, mascarado, ou não, um fora da Lei – ideia que, ironicamente, pode fazer do personagem Coringa mais próximo do próprio Batman, quem, também, vive entre o legal e o ilegal, a sanidade e a “loucura”, democracia e heroísmo filantrópico, contra as consequências do próprio capitalismo que lhe produziu.

Para ser mais direto, Coringa é sobre a potencialidade da multidão política, capaz de enfrentar o neoliberalismo, a austeridade, a mídia alienante de auditório, o poder econômico explorador, a potencialidade rebelde e resistente. Ao mesmo tempo, é também sobre o risco desta mesma multidão insatisfeita se encaminhar para um movimento violento, não no sentido revolucionário, que depõe o direito, mas no sentido massificante, golpista, sob as decisões de um líder, violento e engraçado, facínora e doce, amado e temido na mesma medida. Um líder capaz de levar a multidão a se transformar numa massa perigosa, que lê o mundo como um lugar onde só há uma única forma de se viver possível e que, fora desta única forma de vida, todos são inimigos e elimináveis.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.