Bemdito

Memento mori: quem nos ensina a morrer?

A capacidade de chorar os mortos é uma forma de respeitar a vida
POR Olivia B. de Avelar

Em novembro de 2020, fomos soterrados por dois tipos de imagens que chegavam pelas redes sociais e pela televisão. Por um lado, cada vez mais covas abertas e caixões sendo enterrados sem despedidas, sem prece e às pressas, com raras e esparsas flores. Caixões que eram cobertos com terra enquanto os familiares tentavam chorar durante o pequeno espaço de tempo destinado às exéquias secas que serviriam de porta de entrada para as próximas horas, dias, meses e anos de ausência. Dentro dos caixões – como informaram, muitas vezes, os noticiários da TV – corpos despidos e envoltos em um saco plástico, medidas sanitárias que tentavam impedir que eles deixassem, como uma última memória, o contágio para outros membros da família. Antes mesmo de sucumbirem à terra, de retornarem ao pó, já eram igualados em uma indigência solitária e injusta. 

Nas outras cenas que, para mim, na época, não pareciam pertencer ao mesmo tempo em que estávamos vivendo, não pareciam estar acontecendo nos mesmos dias e no mesmo espaço que compartilhamos no mundo, pessoas se aglomeravam em festas e shows clandestinos – suados, exibindo uma alegria e uma despreocupação grotesca, estranha – dançavam, bebiam, e promoviam, segundo eles, uma “exaltação da vida”, ou de “estar vivo”, acreditando que, ao desobedecerem os protocolos sanitários e às proibições das aglomerações, exibiam sua coragem e sua ousadia. Um completo e profundo esvaziamento da dimensão trágica da morte e da vida.

Se durante os mais luxuosos e orgiásticos banquetes romanos, quando cada celebração atingia seu ápice e eram trazidos e exibidos, pelas mãos dos escravos, esqueletos humanos – algumas vezes, banhados em prata e, outras vezes, cuidadosamente ajeitados em ataúdes ornados -, hoje, na pós-modernidade, esse elo de força e respeito entre viver e morrer parece ter sido quebrado. Para o homem antigo, era nos momentos de maior prazer que a visão da brevidade da vida se fazia mais pujante: os esqueletos humanos ou suas imagens reproduzidas eram os convidados que não tardavam e nem se antecipavam, chegavam sempre à hora exata e era junto com eles que os mais importantes e ilustres convidados gritavam: carpe diem! Ao erguerem suas taças, ao desfrutarem da comida, da bebida, do ouro e do poder, ao buscarem, com os olhos e com as mãos, os corpos que desejavam. Porém, ao terminarem o brinde e enxugando o vinho dos lábios, o gozo desfeito se transformava em memento mori, momento em que os vivos encaravam, frente a frente, as órbitas vazias que os miravam de volta: lembre-se que você vai morrer.

Não dedicamos muito espaço em nossas agendas abarrotadas e em nossa personalidade em frangalhos para aprender, devidamente, como se deve morrer. Para nos sentarmos, calmamente, com papel e caneta em mãos, e fazermos nossas anotações mais sinceras e sisudas: como eu me sinto quando alguém morre? Como eu me sinto com relação à minha própria morte? Como eu me sinto sabendo, durante cada mísero minuto da vida, que ao “ser” se seguirá o “não ser”, este que chegará pontual e inexoravelmente. 

Memento mori: me adoece essa percepção da vida que não contempla a morte como amiga e vizinha. Qualquer vida que se celebra comporta a morte em seu bojo – é a efemeridade da existência que faz com que os momentos sejam experimentados como filigranas de eternidade. Me assusta uma sociedade que não se curva em respeito e comoção sobre covas rasas no noticiário da TV. Me espanta uma sociedade que trata o dia de finados como, somente, um feriado comercial e uma oportunidade de ir à praia ou de comer churrasco: sem sua face trágica, o prazer de estar vivo se deteriora em desatino. 

Celebrar a vida se faz em respeito aos mortos – aqueles que nos olham, de soslaio, e comentam entre si: “Nós, que aqui estamos, por vós esperamos”; como eram vivos e audaciosos e desafiadores todos os mortos que assistimos durante esse primeiro filme escolhido para a décima oitava semana do nosso clube. A morte arranca de nós o respeito que não entregamos de bom grado. A vida sem o peso de suas asas é lodosa e interminável – enganam-se aqueles que imploram pela vida eterna – é a morte que nos encara nos olhos e nos pergunta: quer que eu te humilhe ou quer me usar para nunca mais ser humilhado? A vida, quando acolhida à sombra da morte, nos liberta da servidão para qualquer senhor externo ou desvario interno, porque tudo, absolutamente tudo, ganha sua real dimensão e seu verdadeiro valor quando contrastado com nossa efemeridade e finitude.

O segundo filme, “A Partida”, nos conta a história de um tempo e de uma era quando os cortejos fúnebres cortavam as principais ruas das cidades do Japão. Quando as fachadas das casas exibiam fitas pretas e palavras de luto para avisar aos visitantes que ali se pranteava um morto. Quando os enlutados vestiam-se de preto, por respeito, por reclusão reverente. Sobre quando se bebia o defunto e quando se acendiam velas. Quando se rezavam missas, cânticos, elegias. Quando os minutos de silêncio eram respeitados. Quando os filhos usavam as próprias mãos para enterrarem os pais e, depois de tirar a terra das unhas, se lavavam e se renovavam para segurar suas próprias crianças pelas mãos, ensinando a elas que o caminho da vida é o mesmo que leva ao túmulo.

Quando a dimensão trágica da vida nos segura com sua mão gelada e encaramos, de frente, um corpo inerte entre flores e lágrimas, sentimos que “para isso fomos feitos: para enterrar nossos mortos” – e é nesse momento que o calor do sangue nos sobe às têmporas e o prazer se avisa com cheiro de gozo e de glória, e a terra é quente porque ainda estamos sobre ela e o gosto é bom porque temos fome. É a morte que incita a gana com que devemos sorver a vida. É ela quem nos acompanha e com quem brindamos por respeito e choramos por humanidade. É ela que nos ampara e nos diz que, quando chegar a nossa vez, o resto será silêncio.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.