Bemdito

A vida já foi mais simples?

O ordinário nos filmes "Pequena Miss Sunshine", "Boyhood" e "Paterson"
POR Olivia B. de Avelar

Close up nos olhos de Olive. Absorta, diante da TV, a menina se projeta, sonha. Ela quer mais, quer criar para si mesma seu próprio sol. “E ela celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã”, como escreveu Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra. Olive Hoover – nossa pequena-grande Miss Sunshine – encantada e encantadora, como a própria infância. Infância que ela não sabe o que é – visto que infância é coisa de adulto que rememora, que reconstrói, que beatifica, que emoldura e se pergunta, do alto de sua pilha cambaleante de anos: a vida era mais simples quando eu era criança?

Olive observa o mundo através das lentes de seus óculos: a imagem dos seus desejos refletida neles, um acessório que nos deixa ver o que está gravado no fundo de suas retinas e nas curvas de seu coração. As lentes. Onde foram parar as minhas? Às vezes, ainda me pergunto se abrir mão dos olhos infantis me ajudou, de verdade, a ver o mundo como ele é. Às vezes, me pergunto se morar todos os dias por trás dos olhos de adulta, na verdade, me atrapalha a ver, no mundo, quem eu sou. Nossa Arcádia de bolso: o idílico refúgio – tão reconfortante e tão acolhedor – recriado, minuciosamente, com nossas ilusões todas pintadas à mão. 

Plano aéreo de câmera sobre o pequeno Mason. Ele vai crescer na frente das câmeras. Alguns minutos de filme e ele é um adolescente. Boyhood – da infância à juventude -, o azul do céu nos olhos do nosso pequeno-grande jovem. Grandes e brilhantes olhos que vão se estreitando, se abatendo, se turvando, enquanto se assustam e se inquietam, observando o movimento do olhar que se nivela à linha do horizonte: crescer. 

Enquanto a criança olha para a vida de baixo para cima – passamos nossos primeiros anos encarando canelas e vendo as pessoas se abaixarem para falar conosco – a juventude se olha de frente: queremos pertencer, ser iguais. “Entre outras coisas, você descobrirá que não é a primeira pessoa a ficar confusa, assustada e até enojada com o comportamento humano. Você não está de forma alguma sozinho nesse aspecto, ficará animado e estimulado por saber disso. Muitos, muitos, homens têm estado tão perturbados moral e espiritualmente quanto você está agora”, escreveu J.D.Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio. Os iguais. Onde foram parar os meus?

Foi muito mais fácil fazer amigos do que me despedir deles: a vida era mais simples quando eu era adolescente? Nosso comercial de Coca-cola íntimo e pessoal. Um clipe mental, passando repetidamente, de uma banda que amamos e que já se separou há muito tempo. A letra de música perfeita que conta como nos sentimos naquela tarde de luz amarela e de cotovelos que se tocavam de leve. O dia em que escrevemos, pela primeira vez, em uma folha de caderno: “eu trocaria um momento do meu futuro por um instante do meu passado.” É a adolescência que inaugura, em nós, o pretérito mais que perfeito? 

A nona semana do clube do filme: por que procuramos a simplicidade nos lugares onde não podemos alcançá-la? Quando éramos crianças, quando não existia a Internet, quando a cidade não era tão violenta, quando não usávamos smartphones, quando o Cid Moreira ainda apresentava o Jornal Nacional. Tantas vezes, a nossa incapacidade de lidarmos com a complexidade das relações no presente e com a fineza e efemeridade dos nossos sentimentos nos leva para uma nostalgia/escada de incêndio – a de pensar em um passado canonizado, branco, puro e simples.

O mau é moderno e complica as coisas. Pensar uma vida simples – no presente – evoca, em nós, uma série de clichês batidos e cansados? A casa no campo, os pés no chão, a paisagem bucólica, frutas colhidas no pé, as flores na varanda: um paraíso ingênuo e perdido, prestes a ser reencontrado pela bagatela de um par de chinelos de couro, uma saia rodada e uma bata indiana? Ora empurramos a simplicidade para o passado inatingível, ora a enchemos de acessórios e badulaques que nos fantasiam muito mais do que nos simplificam. 

Paterson: nome do filme, nome da cidade e nome do motorista de ônibus que leva uma vida elegantemente comum. Paterson se levanta todos os dias, veste seu uniforme, dirige durante seu turno, retorna para casa, leva o cachorro para passear, frequenta seu bar costumeiro na companhia de conhecidos. Um personagem que exala humanidade e que nos deixa com a doce suspeita de que, ao desligarmos a tela ao final do filme, continuará, ciclicamente, sua vida, sua rotina e seus dias – simplesmente.

Uma história sem peripécia, uma história feita de vicissitudes, uma história feita inteiramente da mesma matéria que construímos os nossos pequenos cotidianos da vida adulta: a aparentemente interminável sucessão de horas do dia pontuadas por pequenos folguedos, rasos dramas, muita espera e – o que há de se fazer – muita normalidade. Ao conhecer Paterson, parado e esperando o sinal abrir, observando uma caixa de fósforos, escrevendo em seus cadernos, sinto chegar uma súbita intuição: a de que a simplicidade é ordinária. Não era mais real no passado, não nos exige um neo arcadismo, não nos entala e atravanca a rotina com jeitos de ser simples. 

Para nós – que nos metemos goela abaixo, uma após outra, incontáveis maneiras de ser que não nos servem, não nos convêm, não nos preenchem e que não cabem no nosso orçamento – basta um, entre os muitos e sublimes e simples poemas de Paterson, para alcançarmos o nosso alento: olhar para os personagens irremediavelmente comuns e enxergar neles a nossa própria banalíssima, ordinária, costumeira e simples alma é um caminho são e singelo, porém excepcional.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.